Doces traumas
por Bruno CarmeloTalvez os franceses não tenham uma imagem muito romântica de Paris, mas em Attila Marcel, é a cidade de cartão postal, aquela imaginada pelos estrangeiros, que está em cena. O filme é colorido, doce, como um grande sonho infantil. O aspecto mágico das ruas velhas e dos prédios haussmanianos é retratado pelo diretor Sylvain Chomet, que sempre levou sua fantasia às animações (As Bicicletas de Belleville, O Mágico), e agora se arrisca nas filmagens com atores diante das câmeras.
O personagem principal desta história é Paul (Guillaume Gouix), homem infantil de mais de 30 anos, criado desde a infância pelas tias, professoras de dança. Desde que viu seus pais morrerem, aos dois anos de idade, ele cortou relações com o resto do mundo. Paul não pronuncia uma palavra sequer, comunicando-se apenas com os olhos expressivos e com a música clássica, que executa com perfeição ao piano. Reforça-se a imagem dos solitários e/ou gênios que compensam sua deficiência social/física com uma sensibilidade aguda em outro domínio, no caso, o musical. Quanto mais se corta do mundo, melhor é a sua música. Paul é um mártir das artes.
Entre drama e comédia, Attila Marcel recorre a diversas linguagens narrativas, misturando flashbacks da infância, delírios com números musicais, projeções dos desejos dos personagens, montagens paralelas e saltos temporais. O roteiro não chega a ser confuso, por seu didatismo e simplicidade, mas é um tanto desigual. Alguns elementos, como o concurso de música, a paixão pela garota chinesa e a importância da árvore no parque são abordados de maneira superficial, dando a impressão que outras cenas relacionadas a estes foram cortadas na edição. Diversos símbolos (o cachorro, as plantas no apartamento, os objetos de infância) também aparecem com pouca contextualização.
O filme tampouco é sutil em suas referências – vide a presença de Madame Proust (Anne Le Ny), menção ao escritor Marcel Proust, que também usava os bolinhos “madeleines” para relembrar o passado no livro "Em Busca do Tempo Perdido". Pelo menos, Chomet não tem medo do excesso, da carnivalização, e explora seu universo mágico com a naturalidade de um Michel Gondry. Por trás da fantasia, no entanto, existe um retrato duro sobre a morte, o luto, a violência doméstica e o abandono. Chega a ser surpreendente a disputa entre duas mulheres idosas, resultando em rostos desfigurados e sangrentos. Para o bem ou para o mal, Attila Marcel usa a luz saturada, a fotografia enfumaçada e a direção de arte fantasiosa para atenuar as dores do mundo real.
O elenco se sai muito bem na empreitada. Gouix consegue evitar que seu personagem pareça apenas um garoto passivo, transmitindo grande força no olhar e na postura corporal. Anne Le Ny está comovente como sempre - é engraçado pensar que esta atriz de fala rígida e gestos expansivos, absolutamente perfeita em seu papel, não foi a primeira escolha do diretor, que preferia Yolande Moreau no filme. Já Bernadette Lafont e Hélène Vincent são certamente muito talentosas, mas trabalham com personagens-clichês, sem terem muito com que se aprofundar, e sem poder diferenciar suas composições uma da outra.
Em sua visita aos traumas de infância, Attila Marcel revela-se uma viagem mais dolorosa do que suas cores pastéis podem sugerir. A relação entre seres solitários e suas sábias vizinhas idosas pode sugerir uma proximidade com outras fábulas urbanas como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) ou O Porco-Espinho (2009). Mas Attila Marcel possui um fundo particularmente amargo, um contexto social mais aprofundado da desilusão pós-maio de 1968. Por trás da Paris dos sonhos, diversas pessoas amarguradas escondem na música e na dança a sua dificuldade em lidar com o mundo.