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    Bush Mama
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Bush Mama

    A mulher negra com um bebê e um fuzil

    por Bruno Carmelo

    O filme se abre com uma provocação. Durante os letreiros iniciais, após o nome do elenco e da equipe técnica, lê-se “Responsável: Haile Gerima”. O cineasta e ativista etíope não assina como “diretor”, não escolhe a menção “um filme de”, preferindo o atestado de responsabilidade. A maioria dos autores representa através da denominação seu orgulho pela obra e sua personalidade artística. Gerime prefere dar a cara a bater, escancarar o papel de um filme político e violento. “A quem interessar possa, assino embaixo de tudo o que será dito a seguir”, parece enunciar.

    A sequência, de fato, constitui um importante soco no estômago. Gerima usa a filmagem em 16mm para imprimir uma sensação mista entre o documentário profissional e a captação caseira, no que diz respeito à capacidade de ambos em retratarem a realidade com urgência. Enquanto Dorothy (a hipnótica Barbara O. Jones) caminha pela rua, a câmera se foca no seu quadril, suas pernas, suas mãos. O barulho da rua se confunde com as buzinas, os gritos e as vozes em off de assistentes sociais interrogando a personagem sobre sua renda e sua situação familiar, na intenção de eventualmente lhe dar um trabalho. Todos os dias, Dorothy volta para casa decepcionada.

    Bush Mama se articula em dois polos de compreensão da realidade. O primeiro diz respeito à percepção dos fatos: criada com pouca consciência social, a protagonista nunca questionou a batalha diária por emprego, para criar os filhos, nem a pressão sofrida pelo governo e pelos homens brancos. Ela acredita em certa normalidade das relações de poder. Através da janela de casa, assiste a pelo menos dois assassinatos de homens negros pela polícia branca. Dorothy fica assustada, mas depois fecha a cortina e passa ao dia seguinte. Existe um senso de melancolia na vida da mulher incapaz de sonhar com o futuro, porque nunca conheceu algo diferente. Os planos focados no rosto dela, ou do marido TC (Johnny Weathers), estão repletos de marcas físicas e emocionais. O homem retornou traumatizado da guerra, mas ao invés de ser recebido como herói, luta para conseguir se sustentar. Por que defender o seu país se o seu país não defende você?

    O segundo passo consiste em confrontar os personagens à possibilidade de mudanças. Aos poucos, a protagonista começa a receber tanto do marido preso quanto de uma amiga, algumas ideias revolucionárias de ativistas negros. Dorothy descobre que as hierarquias sociais foram construídas artificialmente, e podem ser combatidas. O marido envia cartas criticando a ambição dos “amantes do dinheiro”, sugerindo que “os verdadeiros criminosos continuam em liberdade”. A amiga traz um cartaz, obtido num protesto, de uma mulher negra, africana, segurando um bebê numa mão e um fuzil em outra. Aos poucos, estes símbolos e ideias impregnam a mulher miserável. Ela pensa em sair do país, em matar a assistente social, em se unir a outras pessoas negras. Pensa em agir, ao invés de receber os golpes em silêncio.

    Esteticamente, Gerima constrói uma belíssima sinfonia urbana. O formato quadrado da tela se presta bem aos retratos, e o cineasta sabe como utilizar a diferença de profundidades de campo, mesmo com um escopo tão restrito. A trilha sonora, com um jazz pulsante, comenta a vida dos personagens: as letras das canções são diretamente associadas aos dramas que vivem. O resto do trabalho sonoro constitui uma potente confluência de ruídos, vozes, tiros. Através da saturação de sons e da repetição de imagens, o diretor traduz a violência cotidiana sofrida pela protagonista. Uma sequência de alucinação, misturando o Cristo na cruz, uma mulher abortando e um homem assassinado desperta um impacto impressionante. Bush Mama oferece um cinema ousado, revolucionário em termos políticos e estéticos.

    Filme visto no X Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2017.

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