Nesse mundo opressor, caótico e estressante em que vivemos, rodeado por obrigações, cobranças e todo tipo de responsabilidades, é quase inconcebível imaginar uma realidade em que as pessoas, de repente, do nada, começam a cantar, dançar, sapatear e extravasar, por meio da música, o quanto estão felizes. E, caso alguém fique triste, pensativo ou cabisbaixo, rapidamente aparece algum sujeito para injetar ânimo ao amigo, por meio, é claro, de mais um número musical. Pois esse mundo existe, e reside não apenas na tela do cinema, mas também nos corações e mentes de quem o assiste. Toda essa inocência e ingenuidade se fizeram presentes na chamada Era de Ouro do cinema americano, que perdurou entre as décadas de 1930 e 1960, período em que foram produzidas algumas das mais memoráveis obras cinematográficas deste gênero hoje visto como estrambótico, mas na época tão admirado e glamourizado, o musical.
Sim, de certa forma este gênero traduz um estilo de vida que, se para nós pode parecer até ridículo, transparecia, naquele tempo e para aquele público, um desejo, lá no fundo, de que toda aquela alegria vista na tela pudesse também se refletir na vida real. Vale lembrar que os EUA, de cabeça erguida após a vitória na 2ª Guerra Mundial, ostentava o seu “American Dream” (sonho americano), que estava em plena ebulição. Talvez por tudo isso os famosos musicais da Metro, bem como também de outros estúdios, fizeram todo esse sucesso naquela época, com alguns deles, no decorrer das décadas, adquirindo o status de clássico, o que nos traz àquele considerado o maior de todos os musicais, não por sua grandiosidade visual, mas, talvez, por representar tão bem um sentimento tão simples e, às vezes, tão difícil nos dias de hoje, a mais pura e completa... felicidade.
Cantando Na Chuva, lançado em 1952, ainda nos traz um curiosíssimo roteiro metalinguístico ambientado na Hollywood de 1927, ano da introdução do som no cinema, o que levou os estúdios a terem que se adaptar à nova tecnologia, caso não quisessem ser deixados para trás em meio à concorrência, pois a Warner saiu na frente com O Cantor de Jazz, o primeiro filme falado da história (esse fato é verídico). A trama, fictícia, acompanha, portanto, os nada fáceis desenrolares dessa transição. Logo no início do longa conhecemos dois dos três personagens principais, o grande astro do cinema mudo Don Lockwood (Gene Kelly) e sua “namorada de conveniência”, a também estrela Lina Lamont (Jean Hagen). Algum tempo depois também surge em cena a atriz de teatro Kathy Selden (Debbie Reynolds), que inadvertidamente conhece Don. Está armado o cenário para uma sucessão de situações românticas e cômicas envolvendo este trio. O talento vocal de Kathy, em contraste com a voz insuportavelmente estridente de Lina, além de um sentimento que começa a se desenvolver entre Kathy e Don, poderá mudar para sempre suas carreiras... e suas vidas. Tudo isso, claro, regado a muita música e, como é de costume nesse gênero, com as letras das canções também sendo utilizadas para contar a história.
A despeito do clima lúdico inerente aos musicais, o longa (dirigido pelo próprio Gene Kelly em parceria com Stanley Donen), não perde a oportunidade de expressar suas opiniões acerca de si próprio, fazendo ótimo uso de sua metalinguagem. Afinal, já que se trata de um filme ambientado na terra do cinema e que mostra seus bastidores, o requintado estilo de vida de seus astros e estrelas, que tanto atraem a atenção dos fãs, também está em foco. E muitas das falas ouvidas no decorrer do longa, ainda que discretamente, alfinetam em cheio a própria indústria do cinema. A maneira como é mostrada a rotina de trabalho nos estúdios, por sua vez, proporciona belos momentos, alguns divertidíssimos, como aquele envolvendo a dificuldade em se colocar um microfone em Lina para captar corretamente o som de sua “inconfundível” voz, e também quando o longa-metragem que eles finalmente terminaram de editar é exibido em uma van première e gera na plateia uma reação, no mínimo, risível, para não dizer desastrosa.
Se em alguns momentos a celebração da felicidade em estado pleno de Cantando Na Chuva chega ao ponto de ser irritantemente enfadonha, não nos esqueçamos, contudo, de que se trata de um musical, onde os exageros são permitidos. Make ‘Em Laugh (“Faça Rir”), interpretada no filme por Donald O’Connor (que faz o papel de Cosmo, aquele que, durante sua performance musical sapateia, se joga no chão, dá cambalhota e pirueta, só pra fazer rir o amigo Don) é uma canção que, além de pegajosa, pode ser particularmente familiar para uma parcela do público tupiniquim que se recorda, ou sabe que existiu na TV brasileira um palhaço chamado Bozo, que cantava uma versão em português desta melodia tão “motivacional”. Curioso notar também que, ao contrário do que muita gente imagina, quase todas as canções ouvidas no filme já existiam, inclusive a mais famosa. E diz a lenda que a água utilizada na chuva artificial para a gravação daquela tão conhecida sequência foi misturada com leite, para tornar a precipitação mais densa, facilitando assim a sua captação pelas câmeras.
Singin' In The Rain é ouvida pelo menos três vezes durante o longa, mas foi a voz de Gene Kelly, sua expressão facial, seu caminhar pela calçada daquela rústica vizinhança, enquanto declara na melodia o quanto se sente feliz naquele exato momento, subindo em um poste de luz com o guarda-chuva na mão e, em seguida, sapateando nos paralelepípedos da rua ensopada pela chuva que cai torrencialmente, sob tons azuis esverdeados da fotografia, da direção de arte e do figurino que remetem a uma indissociável paz de espírito, foi, portanto, o conjunto de todos esses elementos que fez surgir uma das sequências mais célebres da 7ª Arte, que dura pouco mais de quatro minutos, e que faz com que Cantando Na Chuva seja lembrado até hoje como um dos maiores clássicos de toda a história do cinema.
Nesse mundo opressor, caótico e estressante em que vivemos, uma inocente chuva de bons sentimentos no decorrer de quase duas horas pode ser, afinal, inspirador para que mudemos nossas perspectivas de vida e percebamos que, sim, a felicidade é algo pelo qual vale a pena lutar e, quando conquistada, ser comemorada... não necessariamente cantando!