A cultura da guerra
por Francisco RussoVocê já viu este filme antes, só que na vida real. Por mais que Ender's Game - O Jogo do Exterminador seja baseado em um livro escrito em 1977 por Orson Scott Card, é impressionante notar certas semelhanças com a postura dos Estados Unidos perante o Afeganistão, quando decidiu invadir o país como forma de “prevenção” diante de possíveis ataques terroristas. O início de Ender’s Game muda os personagens, mas mantém o cenário. Por trás da justificativa de que é preciso deter uma ameaça alienígena que quase aniquilou a humanidade 50 anos atrás, existe todo um aparato militar para exterminar os antigos invasores – por mais que eles não tenham dado as caras desde então. Diante desta lógica torta – mas real, as guerras recentes que o digam -, parte-se para outro extremo: o uso de crianças como armas de jogo. Sim, pois são elas as marionetes incentivadas pelo status quo com o objetivo de matar, destruir, aniquilar, sem dó nem piedade.
Seria possível fazer toda uma tese sobre o absurdo psicológico do uso de crianças em situações como as apresentadas no filme, mas a deixarei de lado em nome de uma análise mais focada no filme em si. Ender (Asa Butterfield) é o “escolhido”, aquele que o coronel Hyrum Graff (Harrison Ford) acredita ser o jovem que livrará a humanidade do mal extra-terrestre. Criado em uma família que endeusa o serviço militar e numa civilização onde a cultura do medo está presente a todo instante, com a repetição contínua de cenas do ataque de décadas atrás, Ender possui um dom nato para criar estratégias, de forma a atingir objetivos a curto e médio prazo. É justamente por isso, aliado ao seu grau de concentração, que ele é tão valioso dentro do núcleo militar. Assim sendo, logo parte para a escola de guerra, local onde deve aprimorar suas qualidades naturais.
É neste trecho que acontece boa parte das cenas de ação do filme, quase sempre dentro de um local que mais parece a Sala de Perigo dos X-Men: por mais que ofereça riscos, todos os que lá estão têm plena consciência de que nada é questão de vida ou morte. Ou seja, podem se arriscar à vontade que o prejuízo maior é a perda da batalha de momento. Entretanto, em meio a este cenário que lembra os videogames de estratégia, é moldado um objetivo oculto: o aperfeiçoamento da vitória a todo custo, sem levar em conta possíveis sacrifícios – inclusive de vidas humanas. É o ápice da cultura da guerra, onde apenas a vitória interessa, seja ela como for.
O desfecho de Ender’s Game até tenta amenizar um pouco a massacrante ideologia do medo e do revide, mas é pouco diante do exibido ao longo do filme. E, diante de tamanho maniqueísmo, todo o restante se torna pequeno. Sim, o filme até possui efeitos especiais interessantes, principalmente dentro da tal Sala de Perigo. Sim, há (poucos) momentos de alívio cômico onde é possível lembrar que os soldados em treinamento ainda são crianças. Sim, o elenco como um todo soa bastante burocrático em cena, principalmente Viola Davis – sua personagem serve apenas de contraponto ao de Ford e, ainda assim, poderia ser limada sem grandes modificações na história como um todo. Sim, há ao menos um diálogo daqueles de envergonhar - “reconheço um puro sangue porque meu pai treinava potros desde quando tinha cinco anos”, numa analogia com os soldados à disposição. Entretanto, apesar das (poucas) virtudes e das (muitas) falhas, a marca maior deixada por Ender’s Game é a mensagem nas entrelinhas que passa ao espectador. Atual, é verdade, mas ainda assim abominável.