Inicialmente diremos que SATYRICON, realizado por Federico Fellini em 1970, não é exatamente uma produção emblemática do neorrealismo italiano. Se desejássemos aludir, dentre a vasta produção deste grande cineasta, a um filme que servisse de paradigma, falaríamos de AMARCORD ou então LA NAVE VÀ, mas, embora não tenha tido a posteridade destes, SATYRICON é o documento pungente da relação que a modernidade guarda com a idade clássica e da relação que a Itália moderna estabelece com o império romano.
Trata-se de um trabalho que é antes de tudo arqueológico, já que é a recuperação de Petrônio Arbitro, um autor romano, mas, também uma obra de arte, já que este passado clássico é recriado, não reapresentado. Trata-se do real em segunda instância, da releitura que o artista (cineasta) faz do texto literário utilizado e da época na qual ele foi escrito.
O enredo gira ao redor do triângulo amoroso formado pelos belos estudantes de artes Ascilto e Encolpio, que compartilham a paixão pelo adolescente Gitone. Ascilto conquista o amor de Gitone e parte com ele do cortiço onde vivia com Encolpio . Há um terremoto, o cortiço é destruído e tem então início as aventuras de Encolpio: participa do banquete de um novo rico que se julga literato, rapta, juntamente com Ascilto, o suposto Hermafrodite (semideus, filho de Venus e Mercúrio e que possui características de ambos os sexos) que vem a morrer, vivendo à seguir com o companheiro e uma escrava negra um idílio amoroso na villa abandonada de um casal patrício que se suicidou após libertar todos os escravos. Encolpio é então raptado por um mercador de escravos, com quem acaba se casando no mar. Por fim, luta com um minotauro e torna-se subitamente impotente, tendo de buscar o auxílio de uma feiticeira para recuperar a potência.
Os figurinos foram primorosamente adaptados de esculturas da era imperial romana, bem como os penteados das matronas e das demais personagens femininas apresentadas, o que dá à ambientação histórica um alto grau de veracidade. No entanto, os cenários conservam algo de teatral: o cortiço onde vivem as personagens principais é apenas uma boca de cena, um pano de fundo, bem como todas as demais construções onde se desenvolve o enredo; o barco do traficante de escravos é apenas um adereço cênico, sem qualquer possibilidade de navegar num mar real, no mundo real...
Esta ambientação fantasista engendra o diálogo que o cinema italiano restabeleceu com os seus artistas plásticos consagrados. Não há como não encontrar Giotto analisando este tipo de cenografia.
O minotauro apresentado é tão pouco convincente quanto a feiticeira; no entanto, embora seja evidente que tudo não passe de embustes, o filme nos convence. Intrinsecamente ele possui uma grande dose de verdade. Esta verdade, esta veracidade reside no fato de que ele não pretende reapresentar a realidade, mas sim recriá-la.
O tempo todo Fellini quer deixar bem claro ao espectador que se trata de um filme e não do mundo real. Tal como o pintor impressionista que nào esconde a sua pincelada, não apagando o seu fazer artístico, Fellini deixa claro que o filme, enquanto obra de arte, é ilusionista, quando muito realista, e não naturalista!
Existe uma dose muito maior de força e de verdade nos filmes de Fellini do que nos grandes épicos de Cecil B. de Mille, contemporâneo de sua primeira fase, pois, embora houvesse um cuidado imenso nas reconstituições primorosas de locações e figurinos naqueles grandes épicos (como Os Dez Mandamentos, Spartacus ou Ben Hur ) às vezes acontecia do todo nos parecer exageradamente asséptico, de cores extremamente uniformes e de personagens absolutamente compostas, mesmo após uma cena de batalha... estava banida a sujeira, o sangue e o suor, os odores e os sabores e, quando somos levados a esta constatação, rompe-se o encanto e a ilusão se desfaz; por mais que o cineasta tenha desejado instaurar a ilusão perfeita,, a mimeses, o efeito conseguido foi exatamente o contrário.
A realidade da obra cinematográfica reside exatamente no fato de que não se trata meramente de uma impostura, mas de uma releitura!
É delicioso apreciar a cena em que o jovem Encolpio está em uma galeria de arte sendo orientado por um artista. Galerias de arte são um fenômeno contemporâneo e, certamente, se existissem na antiguidade aquelas não seriam as obras expostas!