Fellini consegue reunir em "La Doce Vita" um feito impecável. Sugere paralelamente e através da fábula, uma trajetória do jornalista Marcello Rubini que une e constrói a estória ao mesmo tempo, não apresenta e nem pretende ser uma narrativa concisa. Um filme estruturado na perspectiva de um cronista da vida, com reflexões, críticas e comentários elaborados através de uma linguagem poética, onde Fellini sabiamente utiliza do simbolismo, e apresenta claras referências ao expressionismo alemão e o cinema “noir”.
Nos créditos que iniciam essa obra realizada em 1960, já merece atenção o grupo responsável pelo roteiro, além do próprio Federico Fellini que dirigiu e co-roteirizou “La Dolce Vita”, figuram nomes expressivos na construção e expressividade da cinematografia italiana, tais como: Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini. Contado com um grupo tão diversificado de roteiristas que também eram pensadores, críticos, diretores, filósofos, professores e jornalistas, fica mais perceptível a opção de dividir o filme em prólogo, sete episódios com subdivisões e um epílogo. Ainda assim, contamos com um todo, isso é, todas as divisões e subdivisões se consolidam em um todo homogêneo e ainda que separadas conscientes e necessárias para a construção dessa crítica social, repleta de metáforas e simbologias para um futuro local (Roma), mas que é microcosmos de uma situação global, de um esvaziamento de nossas vidas, onde agimos mais como marionetes moldadas pelas influências de grande potências, em especial a norte-americana, e por instituições (religião, sociedade, política, família, educação…) que, ao mesmo tempo, sugam a doçura original da vida e ditam uma forma artificialmente adocicada, que deixam um sabor amargo no modo de viver.
Ao acompanharmos durante sete dias e noites a trajetória de Marcello Rubini (interpretado pelo excelente Marcello Mastroianni), um jornalista do mundo das celebridades que vive em Roma e que auto-questiona o seu ofício e sua vida, principalmente por não ter a sensação de felicidade, nem tão pouco de realização, quem ambos (vida e profissão), projetavam ou prometiam. Assim temos um protagonista que é movido basicamente pelo vazio e a busca em preenchê-lo, além disso, sua busca é atravessada pelo contato com diversas pessoas, que basicamente só expressam a mesma sensação de Marcello, e quando temos uma figura aparentemente de vida preenchida, logo, podemos visualizar a fachada dessa aparência, como na vida do milionário, pai e intelectual Steiner (Alain Cuny), uma figura à primeira vista invejável, mas que intimamente vive sob o desespero e angústias de não conseguir destacar-se, produzir e manter-se na posição e no nível que desperta tanta admiração.
Entre a cena inicial da película, um helicóptero que transporta a imagem de Cristo, sobrevoando a cidade de Roma até o seu destino que é o Vaticano, e que durante o trajeto temos Marcello tentando se comunicar e conquistar algumas moças que estavam tomando sol na cobertura de uma residência. A tentativa de comunicação é metaforicamente debilitada, não só pelo barulho do helicóptero, porém, por diversas condições e situações que refletem na incomunicabilidade da vida moderna. E esse caráter de não-comunicação, é algo presente e consequentemente característico à “La Dolce Vita”. Posso citar um outro exemplo marcante desse aspecto, a relação entre Marcello e milionária Maddalena (Anouk Aimée), com todas as diferenças de classe social e de estilos de vida, essas duas figuras se complementam no vazio e na busca de entender e preencher essas lacunas, porém, ao mesmo tempo, que se assemelham pelo traço da sensação de vazio, se individualizam de tal forma, que não se ouvem, não são capazes de perceberem as semelhanças de necessidades, e acabam tendo um para o outro, como objeto temporário para divertimento e utilização pontual.
A escolha de Fellini em realizar essa produção utilizando da imagem em preto e branco, de uma vida que inversamente ao que propaga o título é limitada em dois tons, e que entre tantos objetivos, tal como de criticar a forma arquetípica da influência norte americana (em especial dos filmes estadunidenses), em suma, colaboram (mérito pelo trabalho realizado por Otello Martellina), na metáfora e narrativa da estória. Utilizando uma fotografia de grossos contrastes entre luz e sombra, propiciando o jogo de uma vida entre aparências, principalmente em ambientes internos, versus o solar da vida externa que apresenta as durezas e a massa urbana, e que volta a se camuflar na noite sombria que é iluminada pela artificialidade de luzes, de bares e casas de festas que refletem néons e pelo flash insaciável das câmeras fotográficas ao registrar os vários momentos de figuras famosas, de celebridades, que entre tantos momentos captam até a ociosidade e a banalidade comum a qualquer ser, e ainda assim, alvo de interesse e curiosidade de pessoas não famosas, principalmente pelo desejo ludibriador de um estilo de vida invejável ou como objetivo, diante a insignificância da vida comum.
Esse tom ludibriador é muito bem representado nas diversas atuações, como também no trabalho de direção de arte e de figurino, que possuem em comum a dimensão da artificialidade escancarada e que tenta velar a realidade, como em grandes casarões e até castelos com belas fachadas, mas que por dentro são verdadeiras ruínas, tal como, a própria identidade de seus proprietários, que se escondem em maquiagens, luzes e figurinos de beleza externa e frágil diante a interioridade decadente dessas pessoas, essa diferença de exterior e interior foi motor estimulante para a criação de Fellini, já que o vestido utilizado pelas senhoras daquela época, cuja moda era de vestidos no estilo bolsa ou "vestido saco", despertou a curiosidade do diretor por sua moldura que pode apresentar e aparentar o corpo, e uma mulher muito linda, mas também pode esconder um ser esquelético de miséria e solidão. Algo que podemos identificar como comum a todos os personagens, sempre presos a uma bela fachada, tendo como destaque a personagem de Marcello Rubini, em mais um trabalho majestoso de Marcello Mastroianni, que consegue estabelecer muito bem as sutilezas e a curva dramática da personagem, bem como o traço nítido de oscilações gráficas de uma vida que oscila em momentos de picos de uma origem duvidosa tanto de felicidade quanto de angústia e tristeza.
Curiosamente a figura dos fotógrafos de celebridades, que posteriormente e por causa desse filme, passaram a ser chamados mundialmente de “paparazzi”, devido à personagem "Paparazzo", interpretado por Walter Santesso, enfim, esse grupo de fotógrafos do filme, parecem mais ocupar uma posição de parasita da vida alheia, não há reflexões sobre o seu trabalho, tão pouco sobre suas atitudes, só se revelam no sedento desejo de invadir a privacidade alheia e obter a melhor foto, o melhor momento que desperte a curiosidade do público que consumirá os jornais impressos ou televisivos, algo que como público de “La Doce Vita”, estamos em parte, iguais, já que somos colocados em um ponto de vista que tenta se aprofundar na curiosidade daquelas vidas, e pelo recorte em maior parte realizado por Fellini, já que neste filme, sua abordagem é dimensionada em vidas de uma classe em posição e condição muito mais favorável, comparado com a vida comum, até mesmo o fotógrafo Marcello Rubini, está em uma situação privilegiada economicamente, o que muitas vezes aparenta ser uma crise que oscila entre o discurso de uma classe privilegiada que vive momentos enfadonhos ao terem suas vidas como material de interesse colocando-os em um lugar de modelo ou se é mais uma crise de idade do jornalista diante sonhos e promessas de vida quando jovem, e que agora, na maturidade, se mostram inalcançáveis. Com isso temos na proposta realizada por Fellini, o registro e a utilização de uma forma (privilegiada), que confunde e gera momentos que inviabiliza seu discurso.
Tendo apenas essa ressalva, “La Dolce Vita” é um filme atemporal, de considerações pertinentes a vida contemporânea e com uma narrativa de estilo impecável, que são verdadeiras heranças para a história do cinema mundial, e que serão por várias gerações, como esquecer da famosa cena em que Marcello Mastroianni e Anita Ekberg se banham na Fontana di Trevi ou das crianças que parodiam e criticam a história das crianças de Fátima, alimentados pela busca dos adultos de uma saída, de uma solução diante a dureza da vida. “La doce Vida” é um filme excepcional em todos os aspectos, mas principalmente por afrontar o espectador com o vazio de nossas incertezas diante à vida.