Corrente de imagens
por Bruno CarmeloEm meio a um festival dedicado a filmes narrativos – sejam eles documentários ou ficções – a exibição de um projeto conceitual, ou experimental, provoca um claro ruído. Sob a Influência não possui uma história propriamente dita, nem mesmo um personagem ou um discurso, a não ser aquele orquestrado pelas imagens em si. No caso, a sua forma também é seu conteúdo: a jovem diretora Karina Cáceres articula centenas de pequenas imagens caseiras, de viagens ou das ruas da cidade, por exemplo, unindo-as por alguma mínima afinidade estética. Depois de uma imagem com fios de renda pendendo de um vestido, por exemplo, vemos outra imagem com fios de canudos, ou fios elétricos.
O projeto cria um efeito curioso de corrente. Uma pessoa suspensa numa corda de bungee jump é associada a imagens de pássaros, também nos ares, e em seguida uma cena com penas se articula com os pássaros, e assim por diante. Cada imagem possui uma ligação direta com a anterior e a próxima, no entanto, quanto mais distantes estiverem umas das outras, menor a probabilidade de dialogarem. Mesmo assim, a diretora faz questão de voltas nesta corrente, repetindo cenas ou retornando a novos planos de uma cena já explorada. O espectador é conduzido através de uma jornada labiríntica, uma viagem sem destino aparente, na qual o propósito é se perder. Não por acaso, muitas imagens transmitem a impressão de liberdade, com viagens, pontos de vista aéreos, pessoas caminhando de modo descompromissado pelas ruas.
Um dos fatores mais interessantes do projeto é o fato de se apropriar de imagens que não soam concebidas inicialmente para constituírem obras de arte. Cáceres retira pequenos trechos de gravações caseiras, cotidianas, despe-as de seus contextos originais e cria uma colagem inédita. Nenhum destes trechos possui apuro estético particular, nem mesmo um objetivo preciso de comunicação. Cabe à diretora criar histórias onde não existiam, montar uma escultura audiovisual através de peças do dia a dia. A arte se constrói essencialmente através da montagem: o filme só nasce quando todas as imagens já estão prontas. Por mais que a cineasta tenha registrado as imagens por conta própria, sua apropriação constitui certa afronta ao cinema refinado de festivais, aquele em que a intenção do autor e sua maestria na construção estética constituem valores evidentes.
Em outras palavras, este é um raro caso em que o teor caseiro, mesmo “feio” das imagens se justifica: a produção foge ao cinema que busca agradar aos olhos, seduzir pela plasticidade, ou ainda encantar e entreter. O prazer proposto por Sob a Influência é de ordem conceitual, cerebral, constituindo-se por oposição a padrões estéticos. Mesmo sem citar abertamente qualquer elemento político, o resultado torna-se militante de uma nova forma de olhar, uma possibilidade de fazer cinema alheio a cânones e provocador, solicitando a constante atenção do público, sua reinterpretação a cada novo momento, sua articulação de interpretações, sempre livres e múltiplas.
Apesar da provocação inerente, o filme se preocupa com a criação de um ritmo fluido, uma composição musical reincidente para unir os fragmentos (a bela trilha de Omar Garaycochea), uma duração curta para não esgotar seus recursos. Em outras palavras, o jogo de imagens é proposto com o espectador, e não apesar dele – Cáceres não demonstra nenhum prazer particular em alienar o público. Dadas as configurações atuais de distribuição e exibição, este projeto seria mais facilmente encontrado numa galeria ou museu, ao invés de uma sala de cinema. No entanto, sua presença no cinema, ao lado de filmes de formato mais convencional, funciona como um potente estímulo aos sentidos.
Filme visto no 28º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em agosto de 2018.