A primeira cena apresenta um recurso que é utilizado em todo o filme: a paisagem de uma determinada rua é mostrada por algum tempo, ao centro uma casa, e nada demais acontece, alguns carros e algumas pessoas passam e só. Então a paisagem é rebobinada e descobrimos que ela não fazia parte do tempo presente da narrativa, mas era a imagem de uma gravação. Esse jogo entre o que "está acontecendo" e o que "foi gravado" é utilizado a todo momento e confunde quem assiste ao filme, e é óbvio, só a quem assiste ao filme, não aos personagens. É um recurso repetido inúmeras vezes, por exemplo quando a mesma casa é filmada outras vezes, ou quando a câmara acompanha um carro, ou alguém num corredor de um prédio etc. Muitas vezes achamos que se trata de uma gravação e não é, como na primeira vez em que o protagonista (Georges) vai até o apartamento indicado pela gravação, ou na última cena do filme, quando a entrada de um colégio é mostrada. Mas qual o sentido disso? Passamos o filme todo tentando descobrir quem está enviando as fitas e os desenhos ao Georges e à sua esposa (Anne), mas Georges, a partir de um determinado momento, tem certeza de quem é que está fazendo isso, e tem certeza antes mesmo de encontrar a tal pessoa pela primeira vez. Nós, espectadores, não temos essa certeza em momento algum. Há uma discrepância entre o que os personagens sabem e o que nós sabemos, Georges sabe mais que nós, Anne sabe menos. A "verdadeira história" do filme nos é escondida a todo momento. Acho que o recurso de que falei inicialmente tem a ver com a forma como a narrativa é construída, o filme nos apresenta um "caso" que vai sendo desdobrado através de mentiras, enganos e meias-verdades; seja entre os personagens, seja na forma como a história nos é contada. Georges esconde a todo momento o que pensa, mente para a esposa, mentia para os pais quando criança, fica bravo quando a esposa conta o que está acontecendo aos amigos, Anne mente para a polícia, Majid mente para Georges sobre as fitas(ou não?) etc. O recurso em questão é a forma como o filme "mente" para nós. O filme também mente para nós na narrativa, quando nos faz acreditar que o filho havia sido seqüestrado, quando nos faz acreditar que nem o Majid e nem seu filho tinham algo a ver com o caso das fitas. Acho que o sentido desse jogo de mentiras, tanto técnico quanto narrativo, tanto entre nós com o filme quanto entre os personagens com eles mesmos, fica evidente numa cena de Georges em seu programa, quando um convidado fazia sua fala e então surge uma voz que diz "para aí, tá muito teórico, junta com aquela outra parte em que ele fala de homossexualismo". Então descobrimos, mais uma vez, que a cena não fazia parte do tempo presente da narrativa, mas de um trabalho de edição do programa do protagonista (e era o próprio quem dava as orientações para a edição). O que o filme nos quer mostrar é como os fatos são, também eles, editados. Como a verdade é construída através de mentiras. Quando uma das fitas é enviada ao chefe de Georges e esse, diante da possibilidade de comprometimento de sua carreira, destrói (ou melhor, diz que destruiu) a fita como um favor, ele diz o seguinte: "achei que era a coisa mais certa a fazer". Por isso o filme não nos apresenta claramente o "verdadeiro culpado" pelo envio dos desenhos e das fitas. As evidências fornecidas pela narrativa apontam para algumas possibilidades: 1ª Majid, 2ª Majid e seu filho, 3ª seu filho, 4ª outra pessoa. Mas, na verdade, pouco importa para a narrativa quem o seja, não há como ter certeza do culpado, a proposta do filme é justamente mostrar que não existem certezas, não existem verdades, não existem fatos que não tenham sido editados. Diante disso, pensei: "que porcaria, não passa de pós-modernismo barato". Mas o filme não se atém uma narrativa inconclusiva e a um jogo de aparências, há algo que vai além disso e que é a verdadeira essência do filme. E essa essência, aquilo que há de "verdade" no filme, é a subalternização e a marginalização do imigrante ou filho de imigrantes, do afro-descendente (pra adotar um termo politicamente correto) na França. Quando Georges conta a Anne o que havia feito com Majid na infância (só pra lembrar, disse que o pai dele tinha mandado Majid cortar a cabeça do galo, além de dizer que ele cuspia sangue), fica evidente que, apesar de ter sido adotado, os laços que uniam Majid à família eram muito mais empregatícios do que familiares, não só Georges o via como empregado da família, mas o próprio Majid ainda se via como tal, pois obedeceu a ordem de Georges, que obedecia, pensava Majid, à ordem do pai. Havia para eles uma relação hierárquica entre os membros da família. E havia também para os pais, pois foi com a versão do filho legítimo (francês e branquinho) que eles ficaram quanto aos problemas entre os dois meninos, "desadotando" Majid e mandando-o para um orfanato. A condição do afro-descendente na França (explorado, marginalizado etc.), é exposta nesta oposição entre a vida de Georges e a de Majid, na oposição entre o que o destino reservou aos dois e, por que não, ao que reservará a seus filhos. Enquanto Majid mora num bairro pobre que Georges nem conhecia (embora vivam na mesma cidade), este mora numa bela casa, numa bela rua; o filho de Georges estuda num bom colégio enquanto o de Majid, sabe-se lá se estuda. Georges é um intelectual, crítico literário, apresentador de televisão e Majid sabe-se lá sua profissão (ou se é desempregado), mas sabemos que é pobre e muito infeliz. Georges não sabia como lidar com Majid nem na infância e nem na vida adulta, jamais quis reencontrá-lo e quando o fez, tratou-o como um estranho qualquer. Embora o filme entre na temática pós-moderna de que "todas as verdades são suspeitas", ele não fica no vazio, não é superficial em sua problemática. Não deixa de apontar para a necessidade de se buscar uma essência por trás da aparência dos. É o que Haneke faz em Caché. Por isso é um excelente filme.