No limítrofe entre a realidade e o sonho, Donnie Darko (2001), de Richard Kelly, rememora as experiências surrealistas de David Lynch atreladas às inconstâncias pós-modernas de David Fisher. Mas, entre o surrealismo do automatismo e a esquizofrenia narrativa, opta-se por seus limiares, circunscritos na utopia da filosofia da viagem no tempo, no inconsciente da psicanálise, na multiplicidade do imaginário evasivo pós-moderno.
O enredo escreve a vida de Donnie Darko (Jake Gyllenhaal), um adolescente americano que, com traços diagnosticados de esquizofrenia, escapa da morte, quando a turbina de um avião cai em seu quarto. Salvo em virtude de um coelho gigante-mensageiro, que comunica-o sobre o fim do mundo em especificados poucos dias, Donnie, nesse meio tempo, é induzido pela visão a cometer pequenos delitos contra alvos bem específicos e simbólicos de sua sociedade.
A proposta conduz o espectador a uma realidade distópica em que o espaço e o tempo foram suprimidos e seus sujeitos submersos em um ambiente deslocado, incerto, duvidoso. Condições incentivadoras à racionalização incompleta do espectador, tentado em dar forma a um cenário despedaçado, frustado na ilusão do entendimento fechado, completo. Insistência amparada na filosofia da viagem no tempo, preservadora de certo conforto ao olhar calejado, ao significar o sem significado. Para isso, tomando essa metodologia como indutiva, a narração acrônica é nomeada e dividida em o universo primário e o outro tangente. Espaços cujas delimitações, no filme, estão na realidade atual (primária), representada pela experiência discursiva anterior ao ocorrido com a turbina do avião, e na realidade deslocada (tangente), originária da ruptura temporal daquela, definida sobre a experiência de Donnie após salvo do acidente, e condicionada a auto eclosão, a partir das previsões apocalípticas do coelho. A previsão teórica se ampara na determinação dos cenários e de seus componentes, sob a promessa de uma certeza, quando a narração é explicada por indução, descrevendo o fim do espaço tangente e o reestabelecimento do primário alterado pelas intervenções de sua ruptura.
Entretanto, a inquietação é a única certeza que permanece, insistente, sobre o estado dos vivenciados na experiência fílmica. Uma sensação de incompletude inaplacável distrai os mais conservadores. Mas, aos mais atentos, os discursos entre-cortantes na obra se mostram concordantes ao imaginário pós-moderno. Presunção apresentada no transpor de um tempo presumido, artificial, entre um cenário e outro; na desconstrução dos grandes relatos da atualidade, no destaque de suas minimalísticas, tornando toda a imagem passível de qualquer interpretação, significado. É quando o discurso do inconsciente do personagem principal é rompido pelo do pós-modernismo, na representação da nostalgia norte-americana pelos anos 80, acompanhada pela ditadura das literaturas de autoajuda, em prol da simplificação do entendimento do homem sobre ele mesmo. Ornamentações que fazem tudo parecer confuso, desestruturado, sem sentido, aos olhos do adolescente intérprete que percebe-se como um forasteiro na cidade em que vive. Por isso, a introversão parece uma saída para quem tem planos em tentar preservar o que ainda há de bom nessa sociedade. Perspectiva quase que narcísica de Donnie, sustentada na promessa de voltar no tempo para “salvar o mundo”, de sua previsível autodestruição. Com isso, perdido em suas fantasias, só lhe resta a negação dos discursos totalizantes dos professores, do conservadorismo de sua família e a obediência às coordenadas de seu imaginário, como um bom esquizofrênico: o herói perdido entre as tomadas de um videoclipe alucinógeno. Estimativas coerentes com o seu diagnóstico psicológico ou nada incomuns para alguém de nome Donnie Darko, afinal, com esse nome, por que não podia ele ser um super-herói?
O rico imaginário de Donnie, diagnosticado adoecido, se torna o caminho a uma montagem fílmica comprometida com os ditames do inconsciente e os desvios da razão, alternativa eficaz na compreensão dos saltos no tempo narrativo, ou no deslocamento e condensação dos personagens empenhados na realização de seus narcisismos. Sincretismo audiovisual, revelador das incertezas pós-modernas, que ultrapassam seu meio de exibição. Revelações intimadoras às instituições sociais e dogmáticas da atualidade, que entre uma cena e outra se tornam desinteressantes e superficiais ao personagem principal, não distante, talvez, da acepção atribuída por seu espectador.
O filme mantém o mistério, na surpresa da identificação do estado de vigília de todos os personagens, adormecidos ao som de “Mad world”, de Gary Jules, revelando o que é omisso, recalcado, no inconsciente da imagem, como promessa apocalíptica do final do mundo das certezas.