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    Anora
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Anora

    Filme vencedor do Festival de Cannes é uma aventura bem-humorada, dramática e cheia de estilo

    por Aline Pereira

    “Eu estou sempre feliz”, ouvimos em um dos momentos de Anora que expressam com uma naturalidade arrebatadora muito que Sean Baker (Projeto Flórida) parece ter colocado em seu filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024. Com a hipnótica Mickey Madison no papel de uma dançarina e acompanhante, Anora aproveita os melhores elementos do gênero de comédia romântica para investir o público em uma trama que, sob o caos das luzes neon e grandes xingamentos, são uma grande representação das dinâmicas de poder do mundo real. Com muito, muito estilo.

    A história da protagonista de Anora, que se apresenta como Ani, começa a se movimentar quando surge em cena Ivan (Mark Eidelstein), um jovem herdeiro russo com dinheiro demais e limites de menos que se torna cliente dela no clube em que Ani trabalha. Inexperiente e alienado em seu universo de luxo e ostentação, Ivan se encanta por Ani – bem, no mínimo, pelos serviços sexuais que ela o proporciona – e, em uma escalada caótica e hilária, os dois acabam se casando.

    O clima de ardência e romance, é claro, fecha logo depois: Anora pensa que tirou a sorte grande com o casamento, mas assim que os pais distantes descobrem que Ivan “aprontou” de novo, tem início uma corrida contra o tempo para anular o matrimônio. Para a família dele, é impensável a união do herdeiro com uma profissional do sexo. Assim, toda a experiência entorpecedora e, em alguma medida, acolhedora que Ani vinha vivendo - e oferecendo - até então se transforma na tempestade de uma realidade opressora, desigual e que deixa claro o recado: quem tem mais poder, vence.

    Neon

    Anora é ingênua, dissimulada, encantadora, frágil, autêntica – é tudo ao mesmo tempo

    As escolhas criativas do roteiro, direção e a interpretação de Mickey Madison tornam Anora uma protagonista completa. É fácil se conectar com os dilemas e navegar pelo misto de ingenuidade e esperteza que nos apresenta: temos uma personagem cuja fragilidade continua visível mesmo em seus momentos mais impetuosos. Com isso, o que se formou, para mim, é retrato de uma geração (dentro de um recorte, é claro) que se divide entre um certo ar de desdém e uma imensa vulnerabilidade. Ani é debochada, mas tão profundamente autêntica que não resta opção a não ser torcer para que ela encontre um bom caminho.

    Habituada à vida cercada pela exploração sexual, Ani aprendeu exatamente o que precisa fazer e como se comportar para evitar ciladas e tirar alguma vantagem das situações, mas acaba aprendendo (e nós também, junto com ela), que a queda de braço contra a estrutura social é duríssima e não importa muito quanta força ela tenha. Na briga contra uma família rica e poderosa, não há esperteza que a salve.

    O brilho dessa história veio justamente neste ponto: em relação a Ivan, Anora parte de um ponto de superioridade que não passa de ilusão. Embora esteja sendo paga para estar com o garoto, ela sente – e é fácil embarcar junto nessa –, que sua experiência de vida garante um certo controle e algum poder de manipular a situação a seu favor. A partir dessa ideia, Sean Baker é habilidoso em criar um clima de comédia romântica à la Uma Linda Mulher (as comparações feitas inúmeras vezes têm sentido aqui) para apontar um caminho em direção ao “felizes para sempre” que é subvertido mais adiante com acontecimentos que desconcertam tanto Ani quanto o espectador.

    Anora explora conflito de classes com romance frustrado

    Quando o relacionamento de Anora e Ivan começa a desandar, fica clara uma boa reflexão sobre desequilíbrio de classes: não importa o quanto Ani seja atenta e objetivamente mais consciente do que Ivan, quem tem os recursos é ele e, assim, no fim das contas, também é dele a palavra final. Em um segundo momento do filme, quando o conflito passa a girar em torno da dissolução do casamento, a participação de Ani se torna cada vez mais passiva: ainda que ela grite e esperneie, existe uma estrutura de poder assustadoramente inabalável que blinda seu novo futuro ex-marido. E é difícil não se ressentir junto com ela.

    Neon

    A partir do dia em que conhece Ivan, a vida de Anora muda completamente e ela refaz seus planos – é ótimo, aliás, como a comédia deixa para o público preencher algumas lacunas sobre a personagem no sentido de tentar entender o quanto ela realmente está envolvida com o menino. Mas enquanto todo esse movimento acontece e tem um custo para Ani, o herdeiro permanece o mesmo: nenhuma das escolhas que ele faz tem o peso de ser decisivo. Nenhum passo que ele dá precisa ser calculado porque nada tem consequências. E se as consequências vierem, é problema dos capangas contratados para resolvê-las.

    Os lugares que os dois ocupam nessa relação colocam em contraste duas pontas da juventude que até tem o risco, a inconsequência e a impulsividade como semelhança, mas o resultado de suas escolhas é imensamente discrepante pela posição que ocupam socialmente. É claro que as escolhas de Ani são julgadas e avaliadas com muito mais dureza do que a inconsequência de Ivan e que ela vai pagar muito mais caro.

    Anora é uma boa comédia

    Anora não faz seus comentários sobre esse debate de forma particularmente original ou surpreendente. Os pontos levantados são pertinentes, atuais e bem ponderados, mas são entregues de forma direta e didática. Não acho que “superficial” seja uma palavra justa para descrever o alcance da discussão, mas diria que o filme faz bom proveito do “óbvio” com uma linguagem carismática.

    Neon

    Dois anos antes de Anora, Triângulo da Tristeza também venceu o Festival de Cannes com uma comédia satírica e, assistindo ao filme de Sean Baker, me lembrei do de Ruben Östlund. Não em uma relação direta entre eles, embora a crítica ao acúmulo de riqueza seja uma tema em comum, mas pela progressão do humor. Ao longo da história, a acidez que de início ficava para os diálogos entre os personagens se transforma em uma avalanche física – que também funciona.

    Quando entram em cena os capangas da família de Ivan e vemos Anora lidar com essas figuras de brutamontes pastelões, o tom da comédia sobe para um estilo que também fez algumas pessoas se lembrarem de Se Beber, Não Case. Faz sentido. A escalada do exagero também tem função na exposição do ridículo das situações, que o longa, no fim, amarra com um desfecho desconfortável, comovente e autêntico – tudo o que Anora é, mas que o lado lá, “que está sempre feliz”, nunca alcança.

    Filme assistido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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