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    Motel Destino
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Motel Destino

    Karim Aïnouz oferece experiência sensorial com erotismo em filme cheio de texturas e brasilidades

    por Diego Souza Carlos

    Vindo de um cinema recheado de atenção e contemplação a grandes planos, campos abertos e estradas que são tão relacionáveis quanto seus personagens, Karim Aïnouz explora aquilo que está confinado, o que está escondido, em Motel Destino. Como um exercício de observar algo que poderia estar enclausurado, o novo filme do cineasta responsável por Madame Satã, A Vida Invisível e O Céu de Suely olha para o interior de seus personagens e mostra uma relato do Brasil através do desejo, da culpa e do amor.

    Fruto de uma colaboração entre Cinema Inflamável e Gullane, produtora responsável por produções como Paloma, Que Horas Ela Volta?, Sintonia e O Rei da TV, a trama tem foco no estabelecimento de beira de estrada localizado no litoral cearense que dá nome ao filme. O pontapé é dado quando Heraldo (Iago Xavier), um jovem em fuga, é acolhido no Motel Destino. Sua chegada transforma completamente o cotidiano das pessoas que vivem ali e do casal interpretado por Fábio Assunção e Nataly Rocha.

    De dentro para fora, de fora para dentro

    Gullane / Pandora Filmes / Cinema Inflamável

    Enquanto vamos descobrindo os cômodos que compõem este espaço que parece estar muito além das fronteiras físicas, a delimitação entre o que está no interior e o que está no exterior cresce tornando a vida de Heraldo (Xavier), Daiana (Rocha) e Elias (Assunção) em um conto colorido e etéreo. Simultaneamente, também existe uma dicotomia dentro do próprio espaço, que, através da fotografia e da direção, se mostra tanto como uma prisão como um campo de libertação do íntimo.

    Após estabelecer o plot inicial da trama, a relação entre o trio de protagonistas se estreita, e muito do que estava dentro deles transborda. Para Elias, existe o seu apreço pelo controle do negócio e das vidas ali, no qual espia aventuras sexuais e provoca sua mulher e seu convidado - com o último, inclusive, alimenta uma tensão que flutua entre a violência, a dominação e o prazer.

    Já para Daiana, a chegada do fugitivo significa muito mais do que uma chance de agitar a sua vida sob as ordens do companheiro, mas também reencontrar aspectos que estavam escondidos em seu interior. Por fim, Heraldo entra na história fugindo da morte, um ato comum de sua existência, mas também seguindo as regras de sobrevivência seguindo o instinto e a impulsividade.

    Textura, sexo e calor: as manifestações sensoriais de Motel Destino

    Gullane / Pandora Filmes / Cinema Inflamável

    Algo que ecoa de maneira constante em Motel Destino é a dinâmica de contrastes. Desde os primeiros minutos do longa essa relação já é posta em evidência quando vemos o paraíso em que Heraldo e seu irmão vivem. Essa introdução é breve, pois logo descobrimos as condições para estarem nesse oásis nordestino. Isso acompanha toda a trama, especialmente com a binaridade do interno e do externo.

    Aos poucos, além do que é dito por eles, sequências subjetivas constroem a parte lúdica e muito bem-vinda de Motel Destino. A partir do erotismo e da fantasia, Karim opta por utilizar elementos do cinema sobrenatural para ilustrar medos e tensões. A brincadeira com as vibrantes cores do motel, pinturas enigmáticas, visões e até a aparição de animais nos corredores guia uma tensão crescente. Essas imagens destacadas pela câmera dão um quê onírico à trama e, aos poucos, o público se sente dentro desse lugar. Ao ver os corredores ganhando vida e os quartos se tornarem palco da manifestação de segredos, a audiência também se torna confidente.

    É engraçado - e bonito da forma como é proposto - como a narrativa se estende para o que podemos chamar de surreal em uma história calcada em tantos elementos realistas. Em uma guinada de experimentação, Karim se distancia do mainstream de maneira criativa, mas economiza em sequências recheadas de frenesi e uma sonoridade mais vibrante, algo que elevaria o sensorial de uma narrativa que preza pela sensualidade.

    Gullane / Pandora Filmes / Cinema Inflamável

    Existem muitos cineastas que têm dificuldade em traduzir a temperatura das emoções, algo que Karim evita de forma perspicaz. O uso da película para filmar Motel Destino evidencia não apenas o apreço estético do cineasta que tenta se desviar da palidez chapada facilmente encontrada no digital, mas também impulsiona a narrativa para frente, para fora e para dentro dos corredores do local que dá nome ao filme. Para registro, gravar um longa a partir deste recurso é se resguardar do talento dos envolvidos, já que existem limitações do analógico.

    A ideia de transformar a narrativa em uma fábula moderna do Brasil, sobretudo da multiplicidade do Ceará, fica nítida quando se vê a pele de Iago Xavier, intérprete de Heraldo, sob o luar. O uso das cores intensifica o sensorial e é possível ver o personagem brilhar sob o calor, sob todas as emoções que o acompanham em toda a trama. Muitos vão se lembrar de Moonlight, Swarm e, claro, de Madame Satã, obra que consagrou o realizador. Embora estejamos em 2024, com tantas inovações tecnológicas, ainda são poucos os cineastas e diretores de fotografia que sabem trabalhar a pele negra nas telas.

    Motel Destino, a fábula moderna de Karim

    Gullane / Pandora Filmes / Cinema Inflamável

    Heraldo é o retrato de uma juventude que se perdeu no caminho, mas diferente dos comuns relatos de décadas atrás, o menino vive numa constante difusão de mudanças do país. Vendo a violência de perto, e consequentemente se tornando agente dela, é curioso ver como há muita pureza em seu olhar, no modo de falar e até mesmo na maneira como reage a alguns acontecimentos. Na direção do realizador, existe um respeito tanto pelo artista quanto pela personagem.

    Há quem o veja como parte do problema proposto em Motel Destino, mas Karim consegue explorar as diferentes camadas de um indivíduo que normalmente é lido como alguém irreparável da sociedade. Ainda que escolhas sejam sinônimo de consequências, a trama que usa a tensão erótica como propulsão é recheada de melancolia - e os dois pontos se encontram naturalmente, pois ambos fazem parte da busca por si em diferentes níveis.

    Em seu primeiro longa-metragem, o jovem ator traz naturalidade ao personagem, algo vindo tanto da direção quanto de si. Com um projeto que flerta com muitos gêneros, do noir à pornochanchada, e apresenta uma trama complexa, Iago surfa junto dos demais astros, principalmente quando as sequências demandam do gestual, dos olhares do garoto.

    Embora seja o protagonista, é difícil desviar a atenção de Fábio Assunção, que aqui encontra uma das melhores performances de sua carreira. Rosto familiar no imaginário brasileiro, principalmente na vida de quem sempre esteve ligado à TV, ele apresenta um antagonismo palatável à realidade brasileira. Longe de ser unidimensional, Elias é tão múltiplo quanto seus companheiros de cena, algo que é bem explorado nas diferentes temperaturas da narrativa.

    Foto: Maria Lobo

    Fabio toca nas manifestações do personagem tanto nos atos de microviolência quanto nas passagens abertamente truculentas. O grande barato no desfecho do longa, inclusive, é tentar identificar as motivações do personagem além da superfície. Assim como a construção dos demais, no entanto, alguns trechos do filme indicam uma história muito mais detalhada de Motel Destino criada antes deste corte final, mas seria injusto apenas apontar isso sem considerar que cinema é fruto de montagem e de escolhas. O bom ritmo da narrativa está totalmente associado a isso.

    Cheia de sorrisos e dores, Nataly também explora a vivência de Daiana de maneira orgânica. Longe de representações cotidianas da indústria cinematográfica de uma mulher que sofre a opressão de terceiros, a atriz entrega uma personagem completamente relacionável, daquelas que evocam empatia e certa surpresa do público. A relação com os demais personagens emplaca uma lição que deveria ser simples: de que ninguém é definido por um trauma e todos são múltiplos.

    Motel Destino é aquele filme que consegue transmitir o calor do Ceará por meio de sua estética literalmente brilhante e cheia de contrastes. Uma vibração que vai de encontro ao drama dos personagens, oferece uma provocação sobre desejos e sobre o amor em um Brasil que vive em transformação. No suor, no tesão e no sexo, Karim oferece uma experiência sensorial que deve fazer muitas emoções escorrerem da audiência.

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