A mulher que morreu duas vezes
por Aline PereiraNa década de 1970, a morte da socialite Ângela Diniz marcou um momento vergonhosamente emblemático para a história da justiça brasileira, que merece ser discutido e relembrado para que não se repita – embora a ameaça continue sempre à espreita, mesmo às vésperas de completar 50 anos. A história de Ângela, interpretada por Isis Valverde (A Força do Querer), é contada no longa que leva seu nome e cuja força e o impacto de ser uma história verdadeira brigam com as escolhas da trama enquanto obra cinematográfica, que estreou no 51º Festival de Cinema de Gramado.
Nascida em 1944, Ângela Maria Fernandes Diniz ganhou o apelido de “Pantera de Minas” graças à vida pública movimentada que levava: figurinha carimbada nas colunas sociais da época, a socialite viveu dramas que a tornaram uma personalidade que colidia diretamente com o que se esperava e o que era permitido para mulheres de sua época (não tão distante dos dias atuais quanto deveria). Além de ter assumido a culpa por um assassinato que não cometeu em nome do homem com quem estava envolvida, Angela precisou ceder a guarda de seus filhos ao marido como acordo para se separar dele, já que o divórcio ainda era proibido na época.
O fim de sua vida é uma tragédia em todos os sentidos: Ângela foi morta com quatro tiros no rosto e um na nuca pelo namorado, Raul Fernando do Amaral Street, após uma discussão que os dois tiveram. O julgamento foi um verdadeiro show de horrores documentado pela mídia: a defesa do assassino se baseou quase que completamente no “comportamento” de Angela para justificar o crime. Depois de morta, a mulher teve toda a sua vida – especialmente a “conduta sexual”, é claro – exposta e explorada para escrutínio. Uma culpabilização da vítima que (vamos repetir) não é assim tão distante do que vivemos décadas depois.
Pode ser frustrante a experiência de chegar ao final do filme sem ter nenhum vislumbre do julgamento de Doca, como Raul era conhecido: a brutalidade cometida contra Angela não terminou nos tiros e a mulher continuou a ser agredida em um tribunal revoltante – mas quase nada disso aparece, de fato, no longa. Em vez disso, o que temos é um letreiro que explica brevemente o caso judicial, sem tempo de ilustrar, especialmente para o público mais novo, o marco histórico que este acontecimento significou.
Ainda que a ideia do longa – assinado por Hugo Prata, da cinebiografia de Elis – seja mergulhar na vida e nas emoções de sua protagonista, o julgamento (e os movimentos sociais desencadeados a partir dele) é uma parte tão fundamental do “todo” que é difícil aceitar que não esteja representado, de nenhuma maneira, na cinebiografia. A morte de Ângela é, sim, claro, um acontecimento mais do que suficiente para nos dilacerar, mas sua “segunda morte”, que veio na corte, torna a história dela ainda mais emblemática. Talvez, dar mais tempo à representação do que veio depois fosse um caminho interessante para ter o cinema como ferramenta de reflexão e documentação da época.
Isis Valverde é o grande trunfo de Ângela e sua atuação traz à vida a personalidade magnética com que a socialite costumava ser descrita. Ao mesmo tempo, longe da vida badalada, Ângela guardava o peso de não cumprir expectativas, mas sentir a pressão sobre seus ombros – como mãe, como companheira, como “celebridade”. A atriz é tão intensa quanto imaginamos que a pessoa real era e a dinâmica com o ator Gabriel Braga Nunes (Verdades Secretas), que interpreta Doca, funciona em termos de ilustrar a montanha-russa emocional e abusiva do relacionamento entre os dois – com uma quantidade incontável de cenas de sexo que parecem um pouco repetitivas naquele contexto.
A relação entre Ângela e Doca durou pouquíssimos meses até o desfecho trágico, um aspecto que também acrescenta uma camada de absurdo ao que aconteceu com ela, mas a passagem do tempo também não aparece de forma muito clara na história – ao menos para quem não tem familiaridade com o caso.
A morte de Ângela Diniz aconteceu na casa dela na Praia dos Ossos, uma das mais famosas da região de Búzios, no Rio de Janeiro. Ao contrário da sensação que poderia evocar a princípio, não há nada remotamente tranquilo na paisagem. O tempo na praia parece estar sempre nublado, fechado, e a ambientação trabalha bastante a favor da jornada da protagonista nesse sentido – Ângela tinha um lado muito solar em sua personalidade, mas o namoro com Doca apaga pouco a pouco qualquer resquício de leveza. Há um sorriso dolorosamente triste que deixa clara a vulnerabilidade, ao mesmo tempo em que anuncia a tragédia que virá.
Em geral, a parte final não é exatamente um grande foco quando se trata do gênero de crimes reais, uma vez que já começamos a história sabendo o que vai acontecer no fim. O interesse, em vez disso, vem dos desdobramentos prévios e posteriores. Nesse sentido, talvez o longa se beneficiasse de um pouco mais de fôlego para dramatizar os momentos-chave da trajetória que leva ao fim.
À parte dos deslizes técnicos, Ângela é um filme que respeita a memória de sua protagonista e a trata com sensibilidade e com a dignidade que ela não recebeu na vida real – uma característica importante a ser ressaltada em um período em que o “true crime” se torna um gênero explorado, em algumas obras, sem levar em consideração que está falando sobre pessoas, famílias e problemas reais.
Quase 50 anos depois de sua morte, Ângela ainda está presente em cada “foi ela quem pediu”, “por que se envolveu com tal pessoa?”, “não devia ter tal comportamento” que ouvimos ainda hoje. Toda vez que uma mulher se cala diante de um desrespeito, de uma violência que parece não ser vista, também há uma tragédia mais do que anunciada. Aqui, vale também o lembrete feito pelo filme: foi só em 2023 que a justiça brasileira declarou inconstitucional a tese de “legítima defesa da honra” em casos de feminicídio – e muitas outras Ângelas pagaram o preço antes disso.