Todos os retratos são de fantasmas.
por Aline PereiraAtrás das câmeras (e desta vez, não só), o diretor Kleber Mendonça Filho se tornou um nome que nos leva à ideia de uma espécie de “selo de qualidade”. Não é à toa. Diretor de Bacurau, Aquarius e O Som ao Redor – todos presentes em listas de obras indispensáveis do cinema brasileiro –, o cineasta pernambucano apresentou em 2023 o longa-metragem Retratos Fantasmas. O filme, que estreou elogiado internacionalmente no Festival de Cannes, reúne muitas memórias: da cidade onde nasceu, do cinema regional e nacional e, claro, de sua própria vida. Tudo isso enquanto passeia entre fantasmas de lugares e pessoas que se foram, mas, de alguma forma, também ficaram.
Se tivermos que encaixar Retratos Fantasmas em um gênero cinematográfico, documentário é o que melhor o descreve, mas a sensação é de que também estamos assistindo a uma obra com um toque de ficção – e esse balanço talvez seja uma das melhores características do filme, ambientado especialmente no centro de Recife, cidade-natal de Kleber. A história, que foi trabalhada por quase dez anos, reúne vídeos e fotografias impressionantes de arquivos públicos e do próprio cineasta para explorar as mudanças do ambiente urbano com o passar do tempo, em uma viagem que vai trazer nostalgia até para quem não viveu nada daquilo.
Uma breve passeada pela filmografia de Kleber Mendonça Filho já revela a importância dos lugares nas histórias que conta: tanto quanto os personagens humanos (e caninos, vale destacar, em O Som ao Redor), os locais são parte fundamental da história e talvez Retratos Fantasmas seja a demonstração mais clara desse apreço pelo “cenário”. No início do filme, antes de nos mostrar a cidade, o diretor nos leva para dentro do apartamento em que viveu e filmou várias de suas produções.
Assim, memórias individuais e coletivas se misturam – é tudo uma coisa só, no fim das contas? Retratos Fantasmas deixa um espaço bonito e convidativo para fazer esta ponte entre nossos mundos internos e a realidade externa, que é complexa e implacável para alguns, maleável para outros. Nesse sentido, os lugares passam muito longe de ser apenas pano de fundo, mas funcionam como elementos vivos que facilitam ou dificultam certas experiências que, é claro, formam quem somos (de novo: individualmente e coletivamente). Aqui, as salas de cinema são os espaços explorados profundamente.
Quem cresceu antes da virada do século 21 provavelmente tem essas memórias mais vívidas: era fácil encontrar cinemas de rua nos centros urbanos e é fácil também puxar na memória as imagens dos letreiros, bilheterias, cheiros e entradas geralmente características. De lá para cá, este cenário passou a se tornar um fantasma: transferidos para dentro de shoppings, os cinemas de rua deixaram um buraco emocional – enquanto o físico foi prontamente preenchido por farmácias, lojas, igrejas e outras grandes franquias.
E embora seja ambientada em Recife, vale notar, a história proposta aqui é universal porque há muito em comum entre todos os grandes centros urbanos do mundo, que se renovam para se adequar a novas demandas – e, muitas vezes, passam um rolo compressor em tudo e todos que estiverem pela frente.
A perda desses espaços na rua não é só um indicativo do que aconteceu com a forma como consumimos o próprio cinema (tê-lo quase exclusivamente dentro de shoppings dita, por exemplo, o tipo de filme que ganha destaque, pense bem), mas como nossas relações sociais se transferiram dos espaços públicos para os privados. “Se a gente não tomar cuidado, nem colocamos mais os pés na rua”, disse Kleber Mendonça Filho em entrevista ao AdoroCinema.
A divisão de "blocos" e personagens faz lembrar um roteiro ficcional e, nos últimos minutos de Retratos Fantasmas, há uma cena em que o próprio diretor aparece em frente às câmeras, fazendo um personagem dele mesmo ao lado de um ator que interpreta um motorista de aplicativo. É melhor deixar os detalhes desse diálogo apenas para serem vistos e não lidos aqui, mas o trecho ficcional (que também tem um toque gigante de realidade) é inusitado para a documentação de fatos e memórias que estávamos acompanhando até ali.
Ao mesmo tempo em que parece um pouco didático demais – reforçando um protagonismo do diretor que já estava muito bem estabelecido –, parece que não poderia deixar de estar ali, no sentido de encerrar a história de uma forma tão pessoal quanto começou: conectando as experiências coletivas com as individuais.
Para quem já conhece o trabalho Kleber Mendonça Filho, esse retorno aos bastidores de Aquarius e O Som ao Redor faz uma ponte também nostálgica entre documentário e ficção. As gravações dos dois, feitas há muitos anos atrás, também são fantasmas do passado nessa história – mas os filmes não. E provavelmente nunca serão. Ao mesmo tempo em que as salas de cinema se foram com o tempo, histórias (e pessoas!) que passaram por ela continuam presentes e acho que vem daí o que há de mais impactante em Retratos Fantasmas.
Ao mesmo tempo que os lugares que vieram antes já não estão mais lá, existe alguma coisa deles que inevitavelmente continua com a gente – ainda que a palavra “fantasma” evoque uma sensação negativa logo de cara, não vejo os registros do longa como desesperanços ou necessariamente pessimistas. O resgate dessas antigas presenças também não é exatamente saudosista, mas um lembrete sobre a passagem avassaladora do tempo e da importância de pisar no freio ao menos para exercitar a memória.
Em uma das cenas, o diretor nos mostra um “fantasma” capturado em uma imagem e talvez seja por aí o caminho da síntese do que é o cinema: tudo o que está registrado nas telas, afinal de contas, já é lembrança. Todos os retratos são feitos de fantasmas, não? Espero não estar esticando demais as interpretações, mas, assistindo ao filme, também me senti um pouco fantasma, à espreita, pensando nessa passagem do tempo – com nostalgia, inquietação e vontade de olhar com mais atenção ao redor.