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    Sem Coração
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Sem Coração

    Ambientado nos anos 90, romance adolescente brasileiro tem, sim, muito coração

    por Giovanna Ribeiro

    Existe uma expressão popular que dá conta de descrever, perfeitamente, a situação de se ver diante de algo incômodo, e grande demais para ser ignorado. O elefante branco - ou, para alguns, o elefante na sala - representa esta coisa pouco prática, difícil de ser sustentada, irritante e impossível de desviar o olhar.

    No entanto, a expressão ainda não dá conta de explicar quando nós somos o próprio elefante na sala dos outros. Sentimento que pode ser até mais duradouro na vida de alguns, mas é generalizado quando falamos da adolescência.Temos, assim, uma briga de elefantes em uma sala minúscula.

    Trazer a vivência adolescente para o audiovisual, considerando que os realizadores são pessoas adultas, distantes dessa pulsão e fúria que só uma pessoa com pouco mais de uma década de vida conhece tão bem, é sempre um desafio. Por vezes, há pudor demais. Ou quando não, há condescendência. O que, vale dizer, é uma tragédia. O adolescente, em síntese, quer ser visto e se ver, de alguma forma. Perdem-se oportunidades.

    Nesse sentido, ao nos depararmos com uma obra - vale dizer, LGBTQIAPN+- tão sincera e escancarada quanto Sem Coração, filme de Nara Normande e Tião, selecionado para o Festival do Rio de 2023 - onde venceu o Redentor de Melhor Fotografia e o Prêmio Félix de Melhor Filme -, se faz necessário exaltar, primeiramente, a eficiência. Mas, felizmente, não só.

    Uma jornada de amadurecimento

    Vitrine Filmes

    Sem Coração se passa durante o verão de 1996, no litoral de Alagoas. Tamara (Maya de Vicq) está aproveitando suas últimas semanas na vila pesqueira onde mora, antes de partir para fazer cursinho e se preparar para entrar na Universidade, em Brasília. A menina, que sempre viveu livre, em uma família estimulante, e cercada de amigos, enfrenta o maior dilema de sua vida: aquele fatídico momento de deixar a infância para trás definitivamente, e mudar - de forma irreversível.

    Para adicionar mais um elemento ao impasse de Tamara, um dia, a garota ouve falar de uma adolescente apelidada de "Sem Coração" (Eduarda Samara) - por causa de uma cicatriz que ela tem no peito. Ao longo do verão, Tamara sente uma atração e um interesse crescente por essa menina misteriosa. E medo. Sentimento que, assim como um elefante na sala, ou uma baleia encalhada na praia, também é impossível de ignorar.

    A “Sem Coração” surge para Tamara, como os primeiros amores surgem: quase como uma resposta a orações silenciosas e aos sonhos infantis. Ama-se intensamente, como se aquela pessoa diante de nós, fosse perfeita. Porque é. E assim como a decisão irreversível de mudar para Brasília, é capaz de assustar profundamente Tamara, a descoberta de uma paixão causa o mesmo efeito: é definitiva e definidora.

    A partir daquele encontro, Tamara já é outra. Mesmo que geograficamente, seja possível voltar, ela conseguiria voltar?

    Elenco de Sem Coração combina atuações poderosas

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    Sem Coração, por ser sincero, também é literal. Se quer falar dessa descoberta do mundo, mostra-se. Se quer falar da sexualidade, em sua forma mais inexperiente e precária, mostra-se. Os adolescentes do longa-metragem não são poupados de nada - e o público também não. A masturbação sem o menor constrangimento, o sexo improvisado, tudo se desenrolando em um mesmo terreno afetivo, onde a amizade e a paixão se combinam - e a moralidade costuma vir depois.

    Nesse micro universo litorâneo, os personagens navegam por muitos mares, sem deixar espaço para superficialidades, em uma brutal sensibilidade, de que a vida é feita. No entanto, as relações são simples: de quando as burocracias não se colocam no caminho. As questões de classe, de gênero, raciais e de orientação sexual não atravessam aqueles vínculos, tão primários e fraternais. Embora isso não signifique que o mundo ao redor deixe de percebê-las. E no processo de descoberta do mundo, descobre-se também a violência.

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    Para além de Maya de Vicq e Eduarda Samara, o longa-metragem também conta com atuações pesadas - como forças da natureza - de nomes como Alaylson Emanuel e Kaique Brito. Que são perfeitamente equacionadas com presenças como a de Maeve Jinkings, que dá vida à mãe de Tamara. A atriz de DNA do Crime e Os Outros, em Sem Coração, é calmaria e atenção. As forças se combinam e nada fica fora do lugar. Se os jovens atores são tempestades de verão, Maeve Jinkings é o disco de Bethânia tocando na sala de estar.

    Alaylson Emanuel e Kaique Brito, Galego e Binho, respectivamente, são os responsáveis por experimentarem na pele, que esse medo diante da vida adulta, é justificável. Sobretudo, quando se habita corpos especialmente vulneráveis. E mesmo ao acompanharmos com extrema proximidade e intimidade a história de Tamara, em nenhum momento é possível dar as costas às outras histórias. Porque enquanto Tamara busca se entender por dentro, ela olha com atenção ao redor, durante todo o tempo. E nós olhamos junto.

    A melancolia de viver “sem coração”

    Enfim, a concretização dessa paixão não é eufórica. E se dá em meio a um luto - literal e simbólico, da perda de uma inocência, de uma zona de conforto tão familiar. O encontro entre Tamara e Sem Coração é suave e intuitivo - e vale dizer, a intuição sussurra. E supera o medo.

    Nara Normande e Tião já haviam mostrado que não vinham a passeio, no curta-metragem Sem Coração. Vencedor de "Melhor curta-metragem" na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes 2014. Mas na versão em longa-metragem, a dupla consolida a história como uma aquisição importante ao corredor seleto de grandes obras contemporâneas do cinema nacional. E vão além, ao agora, contar uma história de amor entre duas meninas.

    Sem ignorar questões técnicas, ocasionadas pelo esforço estético ousado que o filme realiza, Sem Coração é um filme quase perfeito. E falo, sobretudo, em tom de elogio. Se fosse perfeito, seria, contraditoriamente, menos autêntico, pois até suas imprecisões técnicas, ornam em sintonia com as inconsistências da fase da vida que ele se propõe a contar.

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