Veterano de cinema, o diretor Win Wenders não se cansa de produzir películas. O mesmo que teve a coragem de fazer “Buena Vista Social Club” e fazê-lo em Cuba, vai para o Japão narrar o cotidiano de um supervisor e limpador de banheiros públicos em Tóquio.
Wenders tem uma experiência de 50 anos com a sétima arte e, ao abraçar o projeto, se sente à vontade numa história improvável de se realizar e de se desenvolver.
Em geral, os filmes japoneses são caracterizados por imagens e poucos diálogos. Se não faz o tipo do espectador, é melhor evitar. “Dias Perfeitos” não foge a essa regra.
A diferença é que o enredo e o roteiro têm mais a ver com uma história que poderia se passar em qualquer lugar do mundo ocidental. Será que foi um desafio para o diretor alemão?
A globalização está em toda parte e isso favorece. Por outro lado, aos acostumados com filmes de ação ou de muita movimentação torcerão o nariz ou sairão da sessão antes do término.
Em quase duas horas, retrata-se de forma igual e frequente o que Hirayama (com ótimo desempenho de Koji Yakusho) faz durante as 24 horas do dia.
Parte da película se concentra em hábitos e atividades que quase todos fazem. Hirayama adota um tipo de vida estoico, com leituras, visitas a locais de seu interesse na cidade, cozinhar, trabalhar e ouvir música. Até aí, nada de espetacular.
Aos poucos, certas coisas são acrescentadas com o bater de fotos com câmera analógica ou a audição de fitas cassete. As falas praticamente não existem para Hirayama. O gestual prepondera e a interação com as outras pessoas vai aumentando.
O contraste entre o trabalho sem valor expressivo perante a sociedade e o relacionamento gradual com outras pessoas tornam-se um bom ingrediente da película.
Momentos estranhos e chamativos com o alienado e desinteressado Takashi (papel de Tokio Emoto), o qual se volta mais para conquistar uma provável namorada.
Para decepção de Takashi, a pretendente se encaixa mais com o padrão e o tipo de Hirayama: interessa-se pelo analógico, escolha a trilha sonora das fitas no carro de serviço e, de certo modo, desperta-se mais para o chefe de Takashi. Explorado de maneira interessante.
Nem por isso, Hirayama (ou traduzindo para nossa língua “Montanha Pacífica”) se abala. O filme vai trazendo novidades no dia a dia do limpador de banheiros como o jogo da velha com desconhecidos e a visita da sobrinha Niko. É com ela que se trocarão ideias, questões mal resolvidas e coincidências sobre estar ou não no mundo.
Esse resignado e responsável cidadão japonês faz muito pelos outros sem buscar interesse e percorre o caminho de sua vida despretensiosamente.
Suas alegrias e a de muitos espectadores da poltrona são as audições de Nina Simone, Lou Reed, Velvet Underground, Rolling Stones, Ottis Redding e Patti Smith. Coisas do analógico e que contrapõe o modernismo tecnológico com pouco conteúdo e pouca satisfação ou garantia de sonho. Livros e caixas de fotografia com poses do sol por entre a copa das árvores só põem mais questionamento: será que esse tipo de vida ainda é válido? Traz mais ou menos felicidade? Hirayama oferece resposta e nos instiga, nos provoca.
O filme, embora ligeiramente cansativo e repetitivo em alguns momentos, dá uma paulada ou um chacoalho sobre o tipo de vida experienciado no século XXI. As cenas finais da brincadeira de sombras motivada por uma confissão chocante e o encontro de Hirayama com o sol traz um clima de reflexão, daquelas parábolas contadas por Jesus. Em ambas as cenas, dá para entrever o otimismo. Hirayama ajuda sem ser ajudado, mantém sua prática de leitura, inspira mais jovens com sua música disposta em fitas, não em streaming, vai à porta de sua casa e sorri para o sol.
Mesmo que o dia seguinte seja previsível, é bom lembrar que nossas vidas não escapam disso. As rotinas de bilhões são quase sempre a mesma, embora gostos e preferências se diferenciem. É uma afinidade com cada um de nós, o filme insinua essa aproximação com o espectador.
O roteiro conjunto de Win Wenders e Takuma Takasaki mistura dois estilos de vida improváveis de se misturar, mas que dá boa química. Em comum, há a abordagem de temas como a relatividade da solidão, a divisão da família e a busca de um sentido de vida.
Embora Koji Yakusho fale pouco no filme, é muito merecida sua premiação como melhor ator no Festival de Cannes de 2023. Não dá para não apostar de que, futuramente, ele brilhe em algum outro filme a estrear nas telonas do mundo afora.
A personagem Hirayama chega a imitar o significado de “Buda”: o que desperta ou tem conhecimento. Isso dentro de um ambiente urbano onde o que importa são o lazer e o descanso, sem esquecer o profissionalismo (a despeito do trabalho que ele se dedica, mas igualmente importante como o lixeiro e o padeiro nosso de cada dia). Ir à sauna, preparar um macarrão, escolher uma trilha sonora dentre o acervo de fitas cassete, frequentar livrarias ou ver uma partida de beisebol basta para esse herói cotidiano e invisível.
Certamente, o filme dividirá opiniões da plateia: há os que vão odiar ou achá-lo sem consistência e desenvolvimento. E há os que vão entrar no clima da proposta, mesmo que seja repetitiva, justificado pelo título da produção. “Dias Perfeitos” pode ser isso. Ou mais do que isso. Ou menos do que isso.
Será que menos é mais? Será que tantos apelos visuais e excessos que nos rodeiam são indicativos de felicidade? “Dias Perfeitos” traz esse exato questionamento de estarmos tão submersos e amarrados num oceano infindável do consumismo e da hiperinformação e sem saber o que fazer em dias tão líquidos.