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    Pedágio
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Pedágio

    Certas coisas nunca mudam

    por Nathalia Jesus

    Se pensarmos rapidinho pelo senso comum, adicionar humor em um filme de comédia é de lei, desnudar a psique dos personagens em uma história dramática é, de certa forma, esperado, e tratar de temas sensíveis pressupõe muita seriedade. Mas, em PedágioCarolina Markowicz vai pelo caminho mais difícil quando subverte tudo o que deveria estar em um lugar ou ser feito de determinada forma.

    A diretora e roteirista foi recentemente homenageada no Festival de Toronto 2023 e uma das características utilizadas para descrevê-la foi “destemida”. Isso é um fato que brilha em luz neon no texto de Pedágio, longa-metragem lindamente estrelado por Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga.

    Em Pedágio, acompanhamos Suellen, uma cobradora de pedágio que se envolve em atividades ilegais para conseguir dinheiro para uma causa que ela julga ser muito nobre: financiar a ida de seu filho, Tiquinho, ao caríssimo curso de “cura gay” ministrado por um famoso pastor estrangeiro.

    Biônica Filmes

    Pedágio: O que é certo ou errado?

    Pedágio é um retrato de quando o amor incondicional só existe em uma das partes, mostrando o quanto podemos ferir a quem amamos quando estamos presos em conceitos muito subjetivos do que é certo ou errado. Partindo deste princípio, o filme navega pelos limites da decência quando pessoas moralmente questionáveis estão tentando ditar como se deve viver corretamente — baseado em uma ótica particular e, de certa forma, coletiva, quando pensamos na homofobia como uma instituição social.

    É interessante acompanhar a dinâmica entre a protagonista e sua amiga de trabalho, a religiosa e carismática Telma — vivida por Aline Marta Maia. As duas, por mais corretas que se julguem, não estão em condições de colocar alguém em uma régua moral, mas existe uma ignorância, e até mesmo uma ingenuidade, que as fazem acreditar que podem. E, afinal, não é isso o que mais vemos por aí? Às vezes, até somos essas pessoas. As duas personagens são tão reais que é impossível não ressoar de alguma forma em que está assistindo.

    No caso de Suellen, a personagem não consegue aceitar quem o filho é verdadeiramente e prefere acreditar em pseudociências, no divino e em qualquer coisa que possa transformá-lo em um homem heterossexual. Por outro lado, Tiquinho não parece se abater por essa rejeição especificamente. Ele é firme e, em nenhum momento, coloca sua própria liberdade e sexualidade em xeque.

    Apesar de um co-protagonista tão seguro de si, Pedágio toca em um ponto que reflete tanto a realidade da comunidade LGBTQ+ que chega a nos rasgar por dentro: a necessidade de ter o afeto da família e, principalmente, da figura materna. Tiquinho não atingiu a maioridade ainda, mas trabalha, tem o próprio dinheiro e até presenteia Suellen com o seu salário. Financeiramente, ele não é tão dependente dela. Mas, emocionalmente, quem não precisa de um amor tão primário quanto o da própria mãe?

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    A mágica de Carolina Markowicz

    Apesar do que parece e de todo o peso que a premissa carrega, Pedágio é tão fácil de consumir que nem parece que estamos falando sobre um filme que trata de temas como homofobia, terapia de conversão, criminalidade e crise familiar. Carolina Markowicz mostra seu superpoder ao conseguir transmitir tanta leveza em uma trama que deveria ser comumente densa e difícil, tudo isso tirando a discussão da superfície, sem jamais soar rasa ou menos urgente.

    Nas mãos de outro cineasta, talvez fosse arriscado salpicar tantas doses de bom humor em uma história que parecia cumprir todos os requisitos para ser uma experiência amarga. Poderia ficar fora do tom, desrespeitoso ou, simplesmente, fútil. No entanto, este não é o caso do filme de Carolina Markowicz, que faz questão de cutucar a ferida aberta, ao mesmo tempo em que provoca risadas entre um momento e outro, para logo em seguida atenuar a densidade do tema.

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    Isso também não seria possível se o elenco não tivesse captado tão bem a intenção dos personagens. O núcleo de Pedágio conta com a sintonia ímpar de Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga, ambos vencedores do Troféu Redentor nas categorias de Melhor Ator e Atriz, e com o talento de coadjuvantes que, definitivamente, foram marcantes em seus papéis e serão lembrados tão facilmente quanto os protagonistas quando pensarmos no filme. Aqui, destaco o brilhante trabalho de Aline Marta Maia, Thomás Aquino e Isac Graça, cujos personagens foram imprescindíveis para a história.

    Em uma trama potente, política e agridoce, conseguimos visualizar uma essência puramente humana pela ótica de personagens, por vezes errôneos, que nos passam a sensação de estarmos espiando a nossa própria vida, a de pessoas próximas, e espelhando a sociedade que conhecemos. Um dos maiores trunfos do cinema feito por brasileiros é, afinal, nos levar a encontrar nas telas referências tão vívidas e inteligíveis do que somos feitos, das maneiras que enxergamos o mundo, como poucos filmes estrangeiros seriam capazes.

    Vale a pena ver Pedágio?

    Filmes muitíssimo conceituais, que deixam inúmeras perguntas jamais respondidas na mente do espectador, são um pouco superestimados, assim como aqueles que explicam cada detalhe parecem insultar nossa inteligência. Pedágio não se deixa cair em nenhum dos dois nichos, embora incite certa curiosidade sobre as consequências de alguns ápices da história e dos personagens neles envolvidos.

    Como grande entusiasta em entender nitidamente o rumo das situações, fiquei criando cenários sobre o que pode ou não ter acontecido próximo ao início do terceiro ato. E, no final de tudo, o longa-metragem alugou um triplex na minha mente e nem foi apenas por causa dessas perguntas, mas pela sutileza dos diálogos, repleto de intenções e frases sucintas que diziam tanto. Uma pessoa apaixonada por palavras também sabe o poder da falta delas.

    Pedágio é belo por ser tão real e, sem nenhuma pretensão, didático. Os bons entendedores lerão as linhas miúdas deixadas no silêncio e conseguirão refletir sobre o quão próxima aquela realidade está — praticamente batendo em nossa porta, por mais triste e absurda que pareça. É um filme que não exige muito mais do que a capacidade de entender o coração do próximo e a de saber que, para o bem ou para o mal, certas coisas nunca mudam.

    *O AdoroCinema assistiu ao filme durante o Festival do Rio 2023.

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