Retorno do clássico baseado na obra de Ariano Suassuna reforça grandiosidade de Chicó e João Grilo, mesmo nos deslizes
por Aline PereiraEnquanto o cinema, de forma mais ampla, vive seu período de “museu de grandes novidades”, parece mesmo irresistível a tentação de apostar na nostalgia e no conhecido para levar o público ao cinema. E se por um lado, há uma questão importante sobre originalidade em pauta nesse sentido, por outro, a busca pelo familiar também é perfeitamente compreensível nesse mesmo período marcado, também de forma mais ampla, por uma sensação de cansaço, tensão e insegurança. Digo isso porque reencontrar Chicó e João Grilo 20 anos depois de os conhecermos é um calor no coração e um conforto que são, sobretudo, muito bem-vindos.
No Natal de 2024 – e com fortes ares de megaespecial de fim de ano –, o Auto da Compadecida 2 trouxe Matheus Nachtergaele e Selton Mello de volta a seus papéis inesquecíveis sob o comando dos diretores Guel Arraes e Flávia Lacerda. Assim como na vida real, a trama também dá um salto de anos e tem início com o reencontro de Chicó e João Grilo, que passaram esse tempo separados. Juntos novamente na cidade de Taperoá, a dupla encontra velhos e novos personagens e precisa usar da esperteza e da sagacidade de sempre para sobreviver em um ambiente cheio de obstáculos.
Na mistura entre o drama e a comédia de O Auto da Compadecida está a abordagem satírica a hipocrisias sociais relacionadas à religião, ganância, casamento, entre outros temas. Na sequência de 2024, os temas se atualizam e João Grilo e Chicó se veem em meio à uma disputa eleitoral que discute poder político, de comunicação, manipulação e, a seu modo, fake news.
O personagem de Nachtergaele, que domina brilhantemente boa parte da narrativa, precisa encontrar outros meios de fazer vingar sua malandragem e a lábia, é claro, continua sendo seu grande trunfo. Quando João Grilo retorna a Taperoá, vem com uma nova imagem pública, já que Chicó passou esse tempo contando ao povo sobre a milagrosa história de vida, morte – e vida de novo – do amigo. Agora, não são mais o padeiro ou o padre que ele precisa manipular, mas um dono de rádio, um coronel linha dura e a própria população.
Nos primeiros minutos em que a dupla surge em cena, a sensação foi de estranhamento, como reencontrar dois velhos conhecidos de quem não se tem notícias há tempos e que – é claro, 20 anos se passaram – estão diferentes. Talvez parte dos espectadores leve algum tempo para se deixar levar por esta nova fantasia, mas no fim das contas, o peso dos personagens vence. A presença (na voz, nas roupas, no jeito de se mexer) de Chicó e João Grilo estão tão marcadas na memória que naturalmente, em algum momento, o reconhecimento vem.
Há uma questão sobre esse reencontro, por outro lado, que não parece muito natural: por que passaram tanto tempo separados? A justificativa na história (que não vamos detalhar, é claro, para evitar spoilers) é pouco convincente para uma relação tão profunda como a que os dois nutrem e que, na reunião, retomam rapidamente. Talvez seja neste quesito que o longa reforça um jeito de “produção especial” e não uma sequência propriamente dita – sem uma base mais sólida para alguns acontecimentos ao longo da trama, fica um gostinho de homenagem, de celebração dos protagonistas e da amizade tão icônica. Algo parecido, aliás, acontece com os novos personagens.
Enquanto Virgínia Cavendish e Enrique Díaz retornam como Rosinha e o cangaceiro Joaquim Brejeiro, Humberto Martins, Fabíula Nascimento, Eduardo Sterblitch e Luis Miranda são as novas figuras principais em Taperoá – além, é claro, da participação de Taís Araujo como a Compadecida. Um elenco, sem dúvidas, cheio de talentos, mas com um encaixe que nem sempre dá certo porque falta robustez para que se encaixem na trama e tenham arcos mais completos.
Em relação à presença dos novos personagens, penso que O Auto da Compadecida 2 funcionaria bem como uma série de televisão em que cada uma destas figuras poderia estrelar seus próprios momentos. E aqui, aliás, deixo um destaque em especial para Luis Miranda: interpretando um vigarista amigo de João Grilo, o ator cria uma figura cativante que parece ter muitas outras boas histórias para contar.
Além dos novos rostos, as escolhas estéticas também marcam uma grande diferença entre o primeiro e o segundo filmes. Enquanto no filme de 2000 a fronteira entre o realismo e a fantasia era suave, a sequência pisa fundo no lúdico, em uma fábula de cores fortes e cenários cartunescos, como a rádio comandada pelo personagem de Sterblitch. Junto a isso, temos uma produção com um clima mais “fechado”, no sentido de que muito da história acontece em ambientes internos e com intervenções digitais.
A mudança causa estranhamento a princípio, mas sinto que, em alguma medida, também afasta a obra da impressão de “imitação” porque dá a ela uma identidade própria, contemporânea e com pontos bem explorados. As anedotas contadas por Chicó, por exemplo, vêm ilustradas com técnica stop motion e dão vida aos inesquecíveis “não sei, só sei que foi assim” do protagonista de Selton Mello.
Ainda que questões com o uso dos personagens e decisões técnicas afastem a obra da genialidade da criação de Ariano Suassuna, a sensação é de que nenhum desses problemas é grande o bastante para bater de frente com Chicó e João Grilo. O lançamento do segundo filme reforça um fato (do qual, acho, sempre soubemos): o Auto da Compadecida é uma das obras mais importantes da cultura brasileira, essa dupla de personagens são lendas e grandes histórias criam laços profundos.