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    Pequenas Coisas Como Estas
    Críticas AdoroCinema
    3,0
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    Pequenas Coisas Como Estas

    Após Oscar de Oppenheimer, Cillian Murphy retorna aos cinemas em drama histórico - profundo, mas cinzento

    por Aline Pereira

    No mesmo ano em que ganhou um Oscar de Melhor Ator pelo trabalho excepcional em Oppenheimer, do também premiado Christopher Nolan, Cillian Murphy voltou às telas em uma escolha curiosa de projeto. Após a gigantesca produção sobre o pai da bomba atômica, o irlandês estrela Pequenas Coisas Como Estas, drama de proporções bem menores que, embora levante uma história importante e pouquíssimo explorada da ficção, o faz com um olhar que parece frear a força da narrativa em prol da presença de sua estrela oscarizada.

    Em Pequenas Coisas Como Estas, Cillian Murphy é Bill Furlong, um modesto vendedor de carvão que habita uma pequena e católica cidade irlandesa. A história, ambientada em meio à década de 1980, se movimenta quando Bill encontra uma mulher aprisionada: ela é uma vítima das chamadas Lavanderias de Madalena ou Asilos de Madalena, instituições que, pautadas na “moralidade”, se dedicavam à “recuperação” de “mulheres caídas” – como você deve ter percebido pela quantidade de aspas, tudo sobre esses locais era controverso.

    As Lavanderias abrigavam mulheres cujos comportamentos e histórias eram considerados fora do padrão moral, o que incluía vítimas de abusos sexuais, mães solteiras, prostitutas, subversivas, além de pessoas com deficiências e transtornos mentais. Estas instituições existiram de verdade e dezenas de milhares de mulheres foram internadas e forçadas ao trabalho compulsório.

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    Pois bem, este cenário histórico terrível e pouquíssimo conhecido pelo público de forma geral serve de pano de fundo para o desenvolvimento do protagonista: o encontro com a prisioneira estremece a presença dele em sua rotina pautada na monotonia do trabalho e no retorno para a casa onde vivia com a esposa e as filhas. Como um homem de poucas palavrasum tipo de papel para o qual já sabemos que Cillian tem muito talento –, Bill é tocado profundamente pelo sofrimento da mulher e a falta de espaço para a expressão transforma seu olhar sobre o dia a dia, incluindo a retomada de memórias de infância.

    No retorno às antigas lembranças, Bill passa por uma jornada de rever suas próprias ideias sobre moral, caridade, religião e talvez, especialmente, sobre compaixão. Com uma trama que corre às vésperas da celebração do Natal, a ideia de fazer o bem a outras pessoas ganha, tradicionalmente, um peso maior no sentido de se tornar uma reflexão mais latente. Acompanhamos esse borbulhar mental com o personagem a partir da forma como ele “reorganiza” a maneira como se lembra de algumas pessoas de seu passado e do destino que se seguiu, assim como frustrações infantis e o reflexo de seu crescimento na vida adulta – com uma família formada por mulheres.

    Magnestimo de Cillian Murphy é destaque na história

    Oppenheimer, é claro, passa longe de ser o único trabalho de grande mérito artístico na filmografia de Cillian Murphy, especialmente no que diz respeito ao fator magnetismo. Dono de um carisma muito particular que vem justamente da resistência em adotar o comportamento padrão que normalmente se espera de uma celebridade de seu calibre hollywoodiano, o ator traz a melancolia ideal para Pequenas Coisas Como Estas.

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    Não se trata de uma sensação de desconexão com o presente, como em Oppenheimer, ou com a “frieza e calculismo” de Peaky Blinders, mas de uma ordenação externa que contém o grande tormento dos introvertidos: é difícil que alguém enxergue os diversos, intensos e profundos atritos internos. Cillian é sutil – mas nunca superficial – em (quase) tudo e esta característica torna mais humana não só a angústia de seu personagem, mas as marcas que ele traz e aparecem sentimentalmente nos flashbacks. E isso nos leva ao meu grande xis da questão aqui.

    Testemunhar o sofrimento é tão ruim quanto ser quem sofre?

    A direção está completamente ciente de que é difícil errar com o ator em cena e que assisti-lo é uma boa experiência. Aos fãs do trabalho dele, o longa de 2024 é mais uma boa oportunidade de vê-lo exercitar o “minimalismo” que o torna distinto. Mas esse foco na presença dele é justamente o que me causou a maior sensação de desequilíbrio na trama: é uma história sobre uma passagem real, a existência das Lavanderias de Madalena e suas vítimas, mas com pouquíssima presença delas.

    Para a parte do público que nunca ouviu falar sobre essas instituições, dificilmente o filme fará qualquer tipo de papel “didático”. Não é necessariamente um problema, mas penso que a falta de elementos mais substanciais pode criar uma barreira na conexão com quem está assistindo. É claro que as situações apresentadas são dramáticas por si só, mas a representação do problema estritamente através da percepção do protagonista cria uma espécie de filtro que me soa estranho, como se lidar com o sofrimento daquelas mulheres fosse um dilema tão grande quanto ser, de fato, uma vítima.

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    Se por um lado, é interessante como Pequenas Coisas Como Estas é sensível ao retratar um certo chacoalhão da autoconsciência (e a dor que esse processo carrega), por outro, a sensação de que a história das vítimas foi mais um trampolim para a evolução do protagonista me deixou com um pé atrás. São inúmeros os retornos às lembranças de infância e as imagens quase sem vida da pequena cidade enquanto Bill enfrenta uma força maligna que é simbólica e dialoga diretamente com ideias de hipocrisia, autoritarismo e sexismo que são muito pertinentes – e justamente por isso, é uma pena que venha em marcha tão lenta.

    O ato de “lavar as mãos”, literalmente e metaforicamente, são motor para levantar uma reflexão sobre culpa e responsabilidade, não de forma individual, mas enquanto sociedade. Quando todo mundo lava as mãos, injustiças continuam sem solução, instituições opressoras continuam agindo e vítimas continuam sofrendo em silêncio. O que talvez tenha faltado em Pequenas Coisas Como Estas talvez tenha sido mais pulso para levantar um ponto que é ótimo, mas com poucas vozes que fariam toda a diferença.

    Filme assistido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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