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    Tia Virginia
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Tia Virginia

    Quem é a sua tia Virgínia?

    por Aline Pereira

    Se você não tem uma Tia Virgínia, talvez a Tia Virgínia da sua família seja você. Depois de As Duas Irenes, o diretor Fábio Meira volta a resgatar suas próprias memórias para transformar em personagem uma espécie de entidade familiar que provavelmente vai te lembrar de alguém com nome e sobrenome. É nesta proximidade com o mundo real que a ficção entrega o que tem de melhor: ao entrar na casa da protagonista de Vera Holtz, é difícil não se sentir parte dos acontecimentos e chegar ao final da experiência um pouquinho, que seja, transformados – como Virgínia. 

    Tia Virgínia estreou no 51º Festival de Gramado com uma trajetória de destaque: a sessão foi, sem dúvidas, a mais aplaudida da edição e, pelo menos três vezes, o público parou para aplaudir uma cena enquanto a história rolava. No final, levou 5 prêmios, incluindo Melhor Roteiro e Melhor Atriz – uma combinação que resume suas principais qualidades: temos uma atuação mais do que inspirada de Vera Holtz com um texto sensível (também assinado por Fábio Meira), honesto e cativante. 

    A protagonista é uma mulher de 70 anos que nunca se casou e não teve filhos. A ela, coube a missão de tomar conta da mãe, cuja saúde debilitada a tornou completamente dependente dos cuidados de Virgínia – que tinha outros planos para sua vida e nunca quis adotar esse papel de cuidadora, mas não teve jeito. O longa, então, nos leva para dentro da casa onde elas moram, no dia de Natal. Virgínia recebe as irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso), o cunhado e os sobrinhos para celebrar a data em uma reunião que é absurda e engraçada, na mesma medida em que é tensa e profunda. 

    Elo Studios

    O campo minado das relações familiares 

    Não é à toa que família é um tema central em uma infinidade de obras artísticas: as relações entre pais, filhos, irmãos, avós, tios e tantos outros graus de parentesco (sanguíneos ou não, importante dizer!) em geral moldam muito do que somos e dos caminhos que tomamos ou são impostos (nem sempre de forma tranquila, importante dizer também!). Tia Virgínia traduz na tela esse campo minado com grande habilidade: a gente entende Virgínia, entende as irmãs, entende até memórias que não são nossas. 

    Entre as três, há uma tensão constante em que cada palavra dita ou não dita pode ser a gota d’água – a decisão aparentemente inofensiva (embora a gente saiba que nunca é) do prato a ser servido no jantar ou de um quarto para dormir podem ser o passo em falso que vai detonar uma bomba de mágoas antigas e dedos apontados. Culpa, responsabilidade e liberdade de escolha se misturam com um mecanismo de proteção e de confronto familiares para quem convive de perto com irmãos e sabe que este é um relacionamento cheio de camadas. 

    A mãe é um assunto em comum e delicado na dinâmica entre as irmãs e, ao mesmo tempo em que não há dúvidas do relacionamento amoroso entre elas, o “peso” do cuidado, às vezes, parece uma punição para Virgínia. Ela se tornou a “tia solteirona” enquanto as outras constituíram suas próprias famílias, então há uma lógica coletiva ali (e no mundo real, a bem da verdade) de que esta responsabilidade com a mãe fica por conta dela – e aí a ideia de ingratidão e cobrança também entram nessa conta. Até seria trágico, mas é mais cômico. 

    Elo Studios

    Para todas as mulheres “loucas” 

    Em filmes que trazem um personagem apontado como loucos pelos outros, é sempre interessante observar o que está causando esse estranhamento e Tia Virgínia nos dá muito espaço para essa interpretação. Há um comportamento definitivamente excêntrico por parte da protagonista, mas daí a dizer que ela está enlouquecendo, como indicam as pessoas que estão a sua volta? O filme nos permite participar deste “tribunal”, mas, particularmente, vejo Virgínia como uma mulher que não quis tomar os caminhos tradicionais, não se encaixa ao que era esperado e ainda é uma rebelde, fazendo o que pode com os recursos que tem. 

    Nesse sentido, a jornada que ela vive no filme deixa também a sensação de história de amadurecimento (aos 70 anos e isso é incrível): estamos vendo Virgínia retomando uma consciência que é dolorosa, mas também libertadora e que não vem sem fazer alguns pequenos estragos no caminho. Senti algo de satisfatório em momentos em que ela, de alguma forma, vestiu a carapuça da maluquice – e o que vi foi uma pessoa que não desistiu de tomar as rédeas da própria vida. Difícil não gostar dela. 

    Vanda e Valquíria, enquanto isso, também enfrentam seus próprios dilemas. Ao contrário do que se possa pensar, os conflitos não as tornam, em nada, figuras vilanescas e, mais uma vez, a gente entende as duas – e poucas coisas são mais angustiantes do que encarar uma situação que precisa de mudanças, mas que é perfeitamente compreensível por que é tão difícil que elas aconteçam. 

    Aqui, vale destacar a química excelente entre as três atrizes. Vera Holtz, no papel principal, domina as cenas, mas, sem dúvidas, o suporte de Arlete Salles e Louise Cardoso erguem o trabalho da protagonista. Temos três grandes atrizes da televisão e do cinema brasileiro cujos talentos individuais são inquestionáveis, mas como conjunto, ganham ainda mais força – tanto nos momentos mais dramáticos, como em uma comédia extravagante e certeira. 

    Elo Studios

    Tia Virgínia vai te fazer pensar na passagem do tempo: como você veio até aqui? 

    Enquanto Virgínia confronta os próprios caminhos que tomou na vida, a sensibilidade da história também pode trazer esse questionamento para quem a acompanha: você se lembra dos planos que fez para estar onde está agora? Consegue se lembrar do que precisou abrir mão por motivos de força maior? No filme, que se passa em um único dia, há alguns elementos físicos que trazem essa lembrança à protagonista – como o antigo vestido feito para um dia importante em sua vida no passado –, mas as conversas entre os personagens também colocam esse assunto para fora.

    A família, para quem tem convivência próxima, costuma ser uma grande “prova” da passagem do tempo porque mantém vivas as nossas memórias. E até tem algo de melancólico nessa nostalgia, mas Tia Virgínia parece um lembrete de que os caminhos tem suas dores e alegrias, mas não são definitivos.

     

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