Procura-se Priscilla
por Nathalia JesusNão é preciso muita imaginação para entender porque as cinebiografias chamam tanta atenção do público. Elas resgatam memórias, homenageiam, trazem à tona histórias pouco conhecidas ou exploradas na mídia e colocam o nome do retratado de volta ao jogo — esteja ele vivo ou não. Para o outro lado, também funciona bem. Em Priscilla, novo trabalho de Sofia Coppola, a biografada em questão participou da produção e aprovou veementemente o resultado. É claro que sim.
Baseado no livro “Elvis e Eu”, escrito por Priscilla Presley e Sandra Harmon e publicado em 1985, o filme acompanha Priscilla Ann Beaulieu desde seus 14 anos de idade, quando conheceu Elvis Presley, que já era um homem adulto e uma das maiores celebridades da música na época. No começo, tudo é flores — afinal, se tem um gênero textual que fez sucesso nos últimos anos são fanfictions, comprovando que o conto de fadas da modernidade é ter um relacionamento com um cantor famoso.
Mas, para um romance que aconteceu no início dos anos 60, não podemos falar muito sobre modernidade por aqui. Inclusive, o filme é um lembrete de que, no auge da fama, Elvis estava namorando uma adolescente que ainda nem chegava perto de terminar os estudos na escola e não tem nada mais conservador e arcaico do que um relacionamento desse tipo sendo normalizado socialmente.
Durante as primeiras exibições de Priscilla, Sofia Coppola fez questão de enfatizar que o filme não era para agradar os fãs de Elvis, pois não era para eles. De fato, não é. Mas, o que a cineasta não falou — e fica nítido nas quase duas horas de duração do longa-metragem — é que esta é uma obra toda construída para a própria retratada apreciar uma versão de si mesma sem nenhum erro, no constante papel da vítima.
É óbvio que, depois de uma adolescente se relacionar com um homem adulto, manipulador e viciado em drogas, a imagem de Priscilla sobre o que viveu com Elvis vai se tornando mais lúcida e ela passa a entender o quanto essa dinâmica doentia a prejudicou. Isso é válido e incontestável. No entanto, o filme não sai desse lugar e cai no maniqueísmo, soando como uma percepção muito enviesada do que a verdadeira Priscilla acredita que ela é.
Este é um dos principais problemas de ter o retratado trabalhando em uma obra biográfica sobre si mesmo. Quando olhamos pelo prisma da ex-esposa de Elvis Presley no filme, ela se torna uma narradora não-confiável ao ocultar quaisquer erros que comprometam sua imagem. O maior erro dela foi ter amado demais. Tudo foi preto e branco, ignorando a existência do cinza.
A Priscilla de Cailee Spaeny cumpre perfeitamente esse papel. Ela é muito pequena em relação ao Elvis, em todos os sentidos, a começar pelo contraste que a altura de Jacob Elordi proporciona nas cenas. A atriz encontrou a nuance exata para retratar uma adolescente esperançosa, ingênua e apaixonada. Então, a vemos evoluir visualmente, transicionando para uma mulher prematuramente adulta, com roupas mais maduras e penteados que não ornam com um rosto tão angelical.
Em todo o filme, acompanhamos a eterna criança que nunca teve chance de crescer de maneira apropriada, competentemente caracterizada como tal. Mas, quando olhamos para o retrato de Cailee Spaeny, é impossível não imaginar a própria Priscilla dando o sinal verde, satisfeita com o fantoche de sua própria imagem. Como alguém que não testemunhou o processo no set, só posso afirmar isso de acordo com as vozes da minha cabeça, mas essa é a impressão que a cinebiografia passa.
O ator de Euphoria definitivamente tem um tempero para interpretar personagens controversos, mas não é muito carismático e isso, de certa forma, foi preocupante quando a escalação do elenco foi revelada. Felizmente, ele segurou a peteca com tanta segurança que fez parecer que essa era apenas uma implicância gratuita minha — quem me conhece, sabe que não sou grande entusiasta do trabalho do rapaz nas telas.
No longa-metragem de Sofia Coppola, Jacob Elordi brilha e é tão confortável em seu papel que faz o teatral Elvis de Austin Butler soar carnavalesco. Todo o método de atuação da estrela do recente filme de Baz Luhrmann parece antiquado quando notamos que o co-protagonista de Priscilla usou muito mais da essência do cantor do que as roupas características e aparatos de distração. A comparação é inevitável, embora cada Elvis tenha apresentado um objetivo diferente em ambas as obras.
A pouca presença de Priscilla — não totalmente causada por Cailee Spaeny, mas pela falta de ousadia de Sofia Coppola — deu a Jacob Elordi o espaço necessário para se fazer visto. Ele até comprovou que pode ser carismático. Dessa forma, criou-se um efeito contrário do que o filme propôs, quase como o fenômeno “Barbie e Ken” no blockbuster de Greta Gerwig, em que a personagem principal foi apagada pela performance magistral de um co-protagonista que tinha mais o que entregar.
Gostemos ou não, a alma de Priscilla está no Elvis de Jacob Elordi, tornando a discussão muito mais sobre o quanto ele é parecido com o verdadeiro cantor retratado, ou como desempenhou um bom trabalho, do que sobre os abusos mostrados pela discreta e opaca protagonista. O ator de Euphoria faz parecer fácil o ofício de interpretar uma pessoa tão cheia de caricaturas sem cair no ridículo.
As observações feitas acima são muito mais sobre o direcionamento da história e como uma perspectiva tão resguardada pode aprisionar a narrativa. Apesar disso, Priscilla não falha em causar imersão. Detalhes como a gigante Graceland, que parece sufocante com a presença de Elvis, os figurinos, maquiagens e até a trilha sonora repleta de canções fora de época (e nenhuma na voz do próprio cantor) não nos causam nenhuma indiferença — impressionam, de fato.
É um filme com toda a carinha do Oscar, tanto por ser uma cinebiografia envolvendo grandes nomes na história da música, quanto por ter sido muito bem sustentada por dois talentosos protagonistas que esbanjaram alguma química em um contexto tão desconfortável.
*O AdoroCinema assistiu ao filme durante o Festival do Rio 2023.