Almodóvar, eu SEI que você tem uma versão estendida
por Aline PereiraEm 2005, O Segredo de Brokeback Mountain chegou aos cinemas como uma revolução no gênero de filmes de faroeste: Jake Gyllenhaal e Heath Ledger estrelaram um drama que se tornou um marco na representação de romances LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que o diretor Ang Lee e os roteiristas Larry McMurtry e Diana Ossana, conquistaram seus respectivos troféus no Oscar. Tudo isso deve ter ficado na mente de Pedro Almodóvar: na época, o aclamado diretor recusou o convite para dirigir o longa por acreditar que não teria liberdade criativa o suficiente para contar a história que queria. Pois bem, quase duas décadas depois, sua resposta veio literalmente a cavalo e ele, enfim, contou a história que queria em Estranha Forma de Vida.
O filme começa com um hipnotizante Manú Rios (Elite) cantando em silêncio o fado português intitulado "Estranha Forma de Vida", lindo e melancólico na voz de Caetano Veloso. A música, que fala de saudade e solidão, dá o tom da história de 30 minutos estrelada por Ethan Hawke e Pedro Pascal, justamente no ano em que The Last of Us o tornou a maior celebridade (e paizão) da televisão – sem dúvidas, aliás, um fator decisivo na divulgação enorme comparada a outros curtas e médias-metragens recentes. No Festival de Cannes 2023, por exemplo, a sessão do filme de Almodóvar foi uma das mais disputadas.
Vemos, então, a chegada de Silva (Pedro Pascal) à cidade protegida pelo xerife Jake (Ethan Hawke). Os dois são velhos conhecidos que ficaram afastados durante 25 anos e, agora, se reencontram em circunstâncias trágicas: houve uma morte na cidade. Silva tem uma ligação com o acontecimento e Jake está na missão de solucionar o caso. O obstáculo: eles eram – ainda são? – apaixonados um pelo outro.
“Em Brokeback Mountain, o personagem de Jake Gyllenhaal diz a Heath Ledger que eles deviam ir embora e trabalhar em um rancho. Heath diz ‘o que dois homens fariam no oeste, trabalhando em um rancho?’. De muitas formas, sinto que meu filme é uma resposta para isso”, disse Almodóvar em entrevista ao The New York Times. Bem, ao assistir a Estranha Forma de Vida, é curioso observar que até há uma resposta literal para esta pergunta em um dos diálogos, mas a profundidade dela fica completamente para a interpretação de quem está assistindo: o diretor certamente tem sua própria visão, mas, para o público, não há uma grande revelação e nem a profundidade do próprio Brokeback Mountain – talvez nem seja possível executar isso em apenas 30 minutos.
No filme de Almodóvar, a discussão sobre descobrir e assumir (interna e externamente) a própria sexualidade não parece ser o foco principal, embora, é claro, haja um peso sobre a questão de ser homossexual em uma sociedade extremamente sexista. É muito tocante aqui é o tema do amor não vivido: alguns flashbacks relembram a paixão intensa entre os dois protagonistas que, agora, mais velhos, deixou uma melancolia amarga em ambos, que se manifesta de formas diferentes: de um lado, temos o xerife emocionalmente fechado e indisponível; do outro, o “cowboy latino" muito mais disposto a revelar e lutar por seus desejos. O contraste entre a “lei” e o “fora-da-lei” portanto fazem uma conexão entre o mundo racional e o mundo emocional – quem é mais ligado a filmes românticos certamente vai sentir a angústia do amor que parece impossível.
Pedro Pascal e Ethan Hawke não têm quase nenhum contato físico durante todo o filme, mas há um erotismo implícito que torna a relação muito convincente – um ótimo ponto para o filme que, com tempo reduzido, não nos conta a história completa desse relacionamento. A sensibilidade de Almodóvar se revela em momentos muito sutis: na forma como Jake olha e se aproxima pelas costas de Silva ou em um take, por exemplo, em uma gaveta de cuecas.
Combinado a uma trilha sonora sensualmente triste, o filme é cheio de insinuações certeiras e, assim como o casal em tela, também provoca, em quem está assistindo, uma expectativa que nunca chega – o estado de “quase” está em toda a história. Assim que os dois têm o primeiro momento de relembrar a relação que tiveram, ficam claras todas as angústias que minaram o relacionamento e que tornam o reencontro ainda mais dramático.
A saudade de seu antigo conhecido não é o único motivo que levou Silva a procurá-lo novamente; é isso o que Jake entende, ao menos. O contexto do crime a ser resolvido coloca ainda mais um peso interessante sobre o envolvimento dos dois. A lealdade de Jake e Silva estão em lados completamente opostos em um impasse que parece impossível de ter um final feliz – uma resposta que Almodóvar não faz a menor cerimônia em deixar pendurada.
Com essa tensão no ar, a meia hora de filme passa ainda mais rápido do que parece. No fim, a vontade é de saber mais e parece que Pedro Almodóvar teria, sim, história para contar em duas horas. Aqui, confesso uma dúvida: é difícil dizer se Estranha Forma de Vida é um bom média-metragem porque a sensação é a de estar assistindo ao primeiro ato de um longa-metragem ou ao primeiro capítulo de uma série.
Essa “primeira parte” da jornada tem sua beleza, mas é como se o filme terminasse justo no momento em que a história "de verdade" (entre várias aspas) iria começar. O drama não parece ser uma obra completa, apesar de ser um bom fragmento. Nesse ponto, acho que o visual quase lúdico (de tão limpinho e organizado!) também contribui para esse clima de “amostra” – vale destacar a co-produção da grife de luxo Yves Saint Laurent, o que pode explicar um tempero “fashionista” que surge especialmente no figurino marcante dos protagonistas.
De alguma maneira, é como se o diretor estivesse dizendo “se eu fosse fazer um filme de faroeste seria assim” e, com Estranha Forma de Vida, nos desse um vislumbre de seu poder (que é inquestionável, diga-se de passagem).