⚠ TEM SPOILERS ⚠
Saltburn - 2023
"Saltburn" é escrito, dirigido e coproduzido por Emerald Fennell, a vencedora do Oscar por Roteiro Original de "Bela Vingança", de 2020. O longa é situado em Oxford e Northamptonshire, Inglaterra, onde se concentra em um estudante da universidade de Oxford que fica obcecado por um colega popular e rico, que mais tarde o convida para passar o verão na propriedade de sua excêntrica família.
Emerald Fennell volta novamente aos holofotes ao apostar na ousadia, nas polêmicas, gerando inúmeras discursões e interpretações. "Saltburn" é o filme mais polêmico dessa temporada de premiações cinematográficas, pois muitas pessoas discutem a banalização das cenas de cunho sexual e nudez explícitas que o longa entrega. A própria diretora foi questionada sobre o tema e afirmou que queria fazer algo diferente, causar estranheza, que fizesse as pessoas pensarem e sentirem algo. Na verdade ela queria tirar o seu espectador da sua zona de conforto, que seria justamente causar o desconforto, causar uma discursão de opiniões adversas, polemizar um texto bastante ousado.
Eu confesso que no início eu achei que "Saltburn" fosse um romance gay, que fosse focar no desenvolvimento daquela descoberta de uma relação de amizade e o despertar de um interesse amoroso entre duas pessoas que se conheceram, algo como o filme "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017). E todo esse meu pensamento faz sentindo, já que inicialmente o roteiro traz uma abordagem em torno do jovem bolsista que acaba de chegar em uma nova universidade e logo quer se enturmar com a galera, ou pelo menos passar a conhecer aquela nova galera. O que logo faz ele deixar de lado o primeiro amigo que fez para se integrar nessa nova galera, que por sua vez o vê como estranho, como pobre, o bolsista que compra roupas no brechó e que ninguém quer sentar ao seu lado. Logo Oliver Quick (Barry Keoghan) se vê em um ambiente em que acaba de conhecer o cara mais popular da universidade, em que as garotas querem usá-lo apenas como uma válvula de escape com a intenção de causar ciúmes naquele galã daquela bolha. Por outro lado o cara popular, Felix Catton (Jacob Elord), logo se compadece pela história triste contada pelo Oliver, que o desperta talvez culpa, pena, interesse, compaixão, até ele o convidar para ir passar um tempo em sua casa.
"Saltburn" é um suspense psicológico, uma comédia de humor negro, um thriller psicológico de comédia ácida, como temas satíricos, com uma abordagem tragicômica, com situações trágicas, adversas e desagradáveis, que nos causa desconforto, que usa temas mórbidos, sérios, para quebrar tabus, que choca e nos causa reflexões sérias sobre questões que normalmente são difíceis de abordar. Eu diria que "Saltburn" é um filme nonsense, fora do habitual, fora do convencional, onde temos uma demonstração de fragilidade, obsessão e vulnerabilidade de uma forma exótica, disfuncional, indigesta, catastrófica, irracional, onde seu principal tempero é a sátira social. Emerald aposta na excentricidade, na extravagância, ao explorar as questões humanas mais sombrias, como desejo e obsessão, que é justamente o maior desejo de Oliver, em querer fazer uma escalada social dentro daquele ambiente.
Podemos considerar que "Saltburn" discuti o sistema de classes sociais, já que temos aquela família tradicional britânica, que usam uma aristocracia inglesa como costumes, com facetas de uma sociedade que é escalonada pelas diferenças sociais e suas crenças arcaicas. Logo temos um estudo de personagens em suas mais variadas camadas, em suas mais variadas facetas, trazendo justamente aquele suspense psicológico em forma de crítica ácida sobre ambição, desejo e poder. Todo esse contexto permeia a nossa curiosidade sobre o Oliver e sua "talvez" origem social diferente daquelas pessoas presentes naquele local, já que a princípio podemos nos questionar sobre a sua principal finalidade, seja ela como ambição pelo poder de uma alta classe social, ou apenas fazer ruir todo aquele castelo por uma pura obsessão sombria e mórbida.
Um ponto muito curioso sobre o roteiro de "Saltburn" é o foco que ele dá no excesso da obsessão humana e o poder absolutamente insano de um desejo obsessivo e obscuro. Pois aqui a ambição e o extremismo é visto como realidades absurdas e doentias, e que se cruzam justamente entre o sexo e o poder causando tensão e desconforto. Obviamente a diretora quis abusar do extremo de uma obsessão sombria e mórbida, onde fatalmente iremos contextualizar a sua obra como um clássico romance gótico, onde encontramos um terror gráfico que pode ser fascinante como pode ser desconfortante. Digo isso pela forma como vamos estudando e descobrindo os desejos letais de Oliver por cada personalidade que habita aquela mansão. E aqui cada um pode interpretar o Oliver de formas diferentes, como o fato de talvez ele despertar uma obsessão sádica e doentia por Felix como uma espécie de desejo sexual, amor e ódio, o que logo explica as cenas mais polêmicas e bizarras do filme.
Nesse ponto temos um grande estudo de personagem que pode abordar um Oliver esquizofrênico e psicopata, onde somos confrontados com o repugnante, com o bizarro, com a ambiguidade, com a melancolia e principalmente com o poder da ilusão. É difícil descrever o Oliver e suas atitudes de um personagem que ficou encantado, obcecado e atraído por aquele mundo lúdico, aristocrático e charmoso do Felix. Toda essa aproximação/amizade é logo escalonada para uma crescente obsessão, principalmente pela forma como o Oliver analisa cada membro daquela excêntrica família. A partir daí a mansão Saltburn é palco das maiores bizarrices do filme, onde temos as cenas mais alarmantes, polêmicas e ousadas do roteiro de Emerald Fennell.
Sobre as cenas polêmicas:
- Quando o Oliver se vê naquele ambiente ele começa a colocar pra fora o seu desejo sexual e doentio por Felix, a partir da cena em que ele o observa se masturbar na banheira e logo após ele vai até a banheira e entra em um completo delírio sexual com a água da banheira.
- Temos a cena com o Oliver fazendo sexo oral e depois transando com a Venetia (Alison Oliver) menstruada. É uma cena bizarra!
- Mais bizarro ainda é a cena em que o Oliver fica nu em cima da sepultura do Felix e começa a transar com a terra como se estivesse transando com ele. Uma clara demonstração de desespero, agonia, sadismo, extremismo e esquizofrenia. Esta cena por si só já é muito bizarra, e ela se tornou a cena mais polêmica do filme.
Sobre as cenas de nudez eu confesso que não me incomodou (assim como as cenas polêmicas também não me incomodaram). Toda essa demonstração de nudez no filme é de fato feita de forma até mais artística do que gratuita, se assim podermos considerar. Eu vejo como uma nudez que faz um contraponto necessário e entendível como o roteiro e a sua proposta, já que estamos falando de obsessão, desejo, ambição, o que leva aos desejos sexuais e consequentemente a nudez. A nudez no filme é vista como o apogeu do Oliver no domínio daquele território, onde consequentemente é o ápice da sua excentricidade e extravagância, algo como uma celebração, um ato de profanação, um ato de tomada de território e de poder, como vemos na cena final do filme, quando o Oliver dança nu ao som de "Murder on the Dancefloor" de Sophie Ellis-Bextor, de 2001.
Sobre o elenco:
Barry Keoghan é a grande estrela do filme. Incrível como o Barry tem uma veia para atuações em personagens carregados e multifacetados, como ele já havia entregado um excelente personagem em "Os Banshees de Inisherin" (2022). Aqui Barry traz o clássico personagem que inicialmente é visto como o estranho, o diferente, o excluído, tentando se enturmar expondo um lado que pode ser encarado até como generoso. Por outro lado ele surpreende com seu lado sombrio, ambicioso, maquiavélico, sádico e doentio. Uma atuação sensacional de Barry Keoghan.
Jacob Elordi ("A Barraca do Beijo") é a personificação do garoto rico, popular, egocêntrico, o centro das atenções, aquele galã que desperta interesse de todos ao seu lado, e que obviamente iria despertar o interesse em Oliver. Jacob traz um personagem que sabe ser carismático e descontraído na medida certa, e contribuí bem para o desenvolvimento de toda a personalidade do Oliver.
Rosamund Pike ("Eu Me Importo") faz uma personagem muito interessante, pois ela é a mãe daquela excêntrica família, sendo ela própria muito excêntrica e extravagante. Elspeth Catton é uma mulher aristocrática, requintada, cheia de maniqueísmos, de costumes, de regras, mas por outro lado é uma mulher vazia, carente, manipulável e cheia de camadas. Mais um trabalho soberbo de Rosamund Pike.
Richard E. Grant ("Todos Estão Falando Sobre Jamie") é o Sir James Catton, o chefe da família. Richard traz aquele personagem que funciona com uma engrenagem principal da trama, que carrega seus costumes e suas contradições, que muita das vezes o coloca preso dentro da sua própria bolha (sua casa e família), e que não enxerga (ou não quer enxergar) tudo que acontece em sua volta. Richard E. Grant nunca decepciona e sempre nos ganha com seus personagens.
Archie Madekwe ("Beau Tem Medo") traz o personagem que mais chama atenção dentro daquela mansão. Ele faz o Farleigh Start, primo de Felix, o excêntrico, o extravagante, que sempre está rodeando todos, sempre interferindo em todas as conversas, sempre querendo comprar a atenção de todos, mas que claramente está preso dentro de si próprio e das suas próprias camadas.
Alison Oliver ("Conversations with Friends") faz a personagem que talvez seja a mais desconexa daquele ambiente desestruturado. Ela é a Venetia Catton, irmã de Felix, que às vezes tenta se mostrar forte, às vezes perdida, às vezes querendo ser o centro das atenções, mas que também às vezes sofre calada. Podemos ver que Venetia tem seus dramas, tem seus desejos, que ora soa como misterioso e ora soa cômico. Aquele seu final é bem trágico e impactante.
Paul Rhys ("Napoleão") é o personagem mais misterioso e obscuro de todo o elenco. Ele faz Duncan, o mordomo de Saltburn, que é carregado de mistérios, de suspenses, que sempre está preso dentro daquele personagem, dentro daquele uniforme, dentro daquelas etiquetas e costumes, dentro daquela prisão de mansão que é o seu verdadeiro calvário. O personagem de Paul Rhys me lembrou a personagem de Houng Chau em "O Menu"(2022).
E completando o elenco com a participação de Carey Mulligan ("Maestro"), que fez a personagem Pamela, amiga de Elspeth.
Sobre o Plot twist:
Oliver foi uma espécie de invasão, de violação sobre aquela casa, e talvez só o mordomo que tenha percebido isso desde a sua chegada. Após a passagem de tempo, onde Oliver descobre que o Sir James Catton havia falecido e reencontra a Elspeth, é que ele retorna até a mansão e está agora na presença da Elspeth entubada e em coma. É a partir daí que temos o Plot de toda a história, onde constatamos que tudo que aconteceu desde a universidade foi planejado e arquitetado por Oliver. Dessa forma temos a cena em que o Oliver vai retirando os aparelhos de Elspeth com os flashbacks mostrando detalhadamente tudo que ele fez para chegar até ali.
Acredito que a maior falha se dá exatamente no Plot, quando a diretora sair do místico, do suspense, para entregar tudo de bandeja, tudo mastigadinho para o espectador. Eu entendo que ali era o final e ela queria nos impactar mostrando realmente o que o Oliver causou e premeditou durante toda sua jornada maquiavélica, mas acredito que se ficasse mais na imaginação, na ambiguidade, no lúdico, o final funcionaria melhor, pois naquela altura já tínhamos pegado todos os planos do Oliver, não precisaria escancarar tudo daquela forma.
Outro ponto que também pode pesar (ou não, vai de cada um), é o fato do longa ser intrigante, ousado, corajoso, audacioso, no discurso de abordagem em torno de uma crítica social mórbida e sombria, mas não ser algo inédito e inovador, já que temos outras obras que debatem muito bem uma crítica ao capitalismo dentro desse universo; que é o caso dos recentes "Triângulo da Tristeza" (2022) e "O Menu" (2022), e o impactante e oscarizado "Parasita" (2020). Por outro lado eu vejo que o longa-metragem de Emerald Fennell teve bastante construção e inspiração do clássico "O Talentoso Ripley" (1955/1999). E aqui eu já nem considero como um demérito, por mais que "Saltburn" tenha bebido bastante dessa fonte, mas ainda assim eu vejo sua autenticidade própria.
Tecnicamente o filme é muito bem montado e muito bem estruturado. A trilha sonora de Anthony Willis (que fez a trilha sonora de "Bela Vingança") é dinâmica, é sagaz, com músicas certeiras com a proposta da obra. A playlist do filme é composta por inúmeras baladas da década de 2000, onde eu destacaria com toda certeza a canção "Murder on the Dancefloor" de Sophie Ellis-Bextor, que ficou completamente estourada no Tik Tok e Spotify. A fotografia do longa também vale destacar por agregar toda a qualidade de cada cena. Assim como a direção de arte, que esteve muito bem presente, sendo bastante fiel com a época e com os cenários repletos de costumes ingleses.
"Saltburn" já tem uma arrecadação de US$ 12,1 milhões nos Estados Unidos e Canadá, e US$ 9,3 milhões em outros territórios, totalizando US$ 21,3 milhões. O longa foi nomeado em duas categorias no Globo de Ouro - Melhor Ator (Barry Keoghan) e Melhor Atriz Coadjuvante (Rosamund Pike). O Critics Choice Awards indicou em três categorias - Fotografia, Direção de Arte e Melhor Filme.
Por fim, Emerald Fennell consegue impactar e se destacar com seu novo longa-metragem, que por si só já se mostra bastante corajoso, ousado e polêmico. De fato "Saltburn" não é um filme de fácil aceitação, que irá agradar e cair no gosto de todos, até por levantar debates críticos e ácidos em torno de temas pertinentes como a obsessão, a ganância e a ambição humana, e por outro lado nos expor cenas bizarras, desconfortantes e extremamente doentias, além de apresentar um teor de nudez que poderá incomodar os mais puritanos.
Porém, na minha visão é um filme que soube implementar seus próprios méritos em um cenário já muito bem abordado em outras produções, conseguindo se destacar em uma abordagem sobre o percurso maquiavélico de um alpinista social, de um psicopata, de um sádico, usando sua forma excêntrica e extravagante de expor o seu lado mais sombrio, letal e sem nenhum pudor.
[13/01/2024]