Aftersun
"Aftersun" é uma Produção da A24 Films, escrito e dirigido por Charlotte Wells. Situado no início dos anos 2000, o filme segue Sophie, uma menina escocesa de 11 anos, de férias com seu pai em um resort turco na véspera de seu 31º aniversário.
"Aftersun" marca a estreia de Charlotte Wells na direção de um longa-metragem, e ela já faz a sua estreia trazendo uma história que soa como um drama bem intimista para ela, visto que ela descreve o seu roteiro como "emocionalmente autobiográfico", pois toda história foi inspirado na morte do seu pai durante a sua adolescência.
Já inicio afirmando que "Aftersun" é um filme belo, primoroso, emocionante, impactante e peculiar. O longa é muito humano, muito sensível, bastante sensorial, que vai se desenvolvendo de forma única, sutil, com um olhar contemplativo, singelo, que vai te envolvendo na história de forma leve, e ao mesmo tempo com uma intensidade que quando você menos perceber já estará completamente envolvido com a trama. Charlotte Wells é magnífica ao trazer um texto muito bem escrito e desenvolvido sobre a vida, sobre o relacionamento e o envolvimento de um pai e uma filha, com várias abordagens distintas e peculiares, entre várias nuances e várias vertentes.
Passamos a acompanhar aquelas férias de um pai e sua filha no dia a dia curtindo aquele resort, brincando, se divertindo, dando várias risadas. Realmente temos um relacionamento muito carinhoso e muito amoroso entre pai e filha, enquanto ambos desfrutam da companhia agradável um do outro, o que mostra que Calum (Paul Mescal) é um pai super atencioso e amável com sua filha Sophie (Frankie Corio). Este é o ponto a ser desenvolvido no roteiro de Charlotte Wells, a forma como ela queria se aprofundar em um período diferente em uma relação entre um pai e uma filha, e uma filha que não mora com o pai, que está apenas passando uma férias com ele. Dessa forma observamos toda aquela conexão e todo aquele envolvimento que vai se criando entre eles, e obviamente observamos toda proteção paternal, que de alguma forma Calum sempre tenta manter sua filha segura e protegida, mesmo que de certa forma ele acabe falhando.
"Aftersun" consegue ser um filme belo, primoroso e encantador, e ao mesmo tempo trágico, escuro e perturbador. Pois é fato que toda história também se passa pela perspectiva de uma Sophie 20 anos mais velha, onde a própria reflete sobre suas alegrias, melancolias e tristezas sobre sua viagem de férias com o pai há 20 anos atrás. Dessa forma também temos um filme sobre memórias, luto, depressão, aceitação, arrependimentos, traumas, frustrações. Um verdadeiro drama de amadurecimento, de reaproximação, de reconciliação, pois Sophie ainda buscava em suas lembranças uma reconciliação do pai que um dia conheceu, que um dia conviveu, com o homem que hoje ela desconhecia.
Um dos pontos que mais engrandece o roteiro de Charlotte Wells é a forma como ela contrasta o amor, a inocência, o descobrimento e o encantamento da pré-adolescente Sophie, com um mundo sombrio, obscuro, denso e mortal de Calum. É muito perceptível o quanto Calum se esforçava para se tornar uma melhor versão de sim próprio quando estava na presença da Sophie, como algo para agradá-la, mas por outro lado a própria Sophie tinha aquela sensação que havia algo errado com ele. Calum estava trancado dentro de si próprio, clamando por urgência, gritando por socorro, seu comportamento era sempre tomado de melancolia e mistério. Este é o lado sombrio e obscuro que o longa também abrange, também explora, e leva consigo o espectador, para adentrar no submundo introspectivo e reflexivo de Calum.
Apesar de ser apenas o longa-metragem de estreia de Charlotte Wells, ela traz uma experiência absurda com um texto que nos faz refletir, nos faz imaginar, nos faz pensar acerca de tudo que estamos vivenciando pelos olhares da Sophie e do próprio Calum. "Aftersun" nos deixa com dúvidas, com incertezas, com inseguranças, pois estamos diante de um relacionamento de pai e filha que é afetado por uma barreira emocional, existe uma barreira entre Sophie e Calum, que muita das vezes impede ambos de se aproximarem da forma que realmente deveria e precisaria. Por isso que o filme é tão peculiar, é tão intimista, pois existe várias lacunas que vão sendo preenchidas com o passar do tempo, e muita das vezes esse tempo é só 20 anos depois, com uma Sophie adulta ainda em busca das memórias do seu pai.
"Aftersun" tem esse poder, tem esse olhar mais seco, que tenta reconstruir (ou pelo menos tenta) pela perspectiva adulta de Sophie uma relação que foi perdida no passado. Realmente é um filme que trata diretamente da busca incansável de uma filha pelo seu pai, ou pelo menos do que ele pode ter sido para ela, do que ele pode ter representado para ela, algo como uma memória afetiva, uma lacuna, uma vazio paternal, que precisaria ser preenchido de alguma forma. Era como se ao buscar o pai, Sophie estivesse buscando a si própria, buscando o seu verdadeiro eu, uma espécie de auto aceitação.
Paul Mescal ("A Filha Perdida") está divino, está excepcional, está triunfante, está magnífico. Faz tempo que eu não assisto uma atuação tão perfeita como a de Paul Mescal. Paul consegue transcender sobre um personagem que estava sofrendo, que estava em desespero, que estava em uma agonia extrema, e o pior de tudo isso era ter que sofrer calado, como se tudo estivesse normal, como se tudo estivesse bem, unicamente pelo fato de ter que passar segurança e carinho para sua filha, ter que dar a atenção que ela precisava e necessitava. Era como se Calum estivesse carregando o mundo em suas costas, pois sofrer calado é angustiante, é desesperador, é uma das piores coisas da vida. Tanto que uma das melhores cenas do filme é justamente a cena em que Calum se desespera ao chorar copiosamente; e esta cena tem uma interpretação monumental de Paul Mescal, onde claramente podemos observar o tamanho da sua entrega e o tamanho da sua veia dramática. E a cena em que ele se entrega ao dançar "Under Pressure" do Queen? Senhoras e senhores, que performance!
A jovem Frankie Corio já se mostra uma ótima atriz, já nos mostra todo o dom e o talento que ela tem na arte de atuar. Frankie conseguiu a proeza de realizar uma atuação leve, singela, sutil, era como se ela não estivesse atuando, era como se fosse ela própria ali no seu dia a dia, em um ambiente de férias. Ela ria naturalmente, agia naturalmente, conversava naturalmente, fazia suas filmagens naturalmente, sem parecer forçada em nada, sem parecer está sendo obrigada a nada, com uma leveza e uma delicadeza extremamente absoluta. Outro ponto foi a química alcançada entre ela e o Paul Mescal, que esteve perceptível em 100% das cenas, tanto pelas partes mais eufóricas quanto pelas partes mais densas e carregadas. Uma cena muito bela é a cena em que ela canta a icônica "Losing My Religion" do R.E.M. com um jeito meio envergonhada esperando que seu pai fosse cantar com ela. Verdadeiramente a jovem Frankie Corio já desponta com um talento muito promissor.
Celia Rowlson-Hall (diretora de "Ma", de 2015) fez a Sophie adulta. É bastante interessante a sua apresentação no filme, mesmo com pouco tempo de tela ela consegue despertar toda a nossa curiosidade.
"Aftersun" foi aclamado pela crítica, que elogiou a direção e o roteiro de Charlotte Wells, e as atuações de Paul Mescal e Frankie Corio, com Paul recebendo uma indicação de Melhor Ator no Oscar. Também foi eleito um dos melhores filmes de 2022 pelo National Board of Review, recebeu o prêmio de Melhor Estreia de um Escritor, Diretor ou Produtor Britânico no BAFTA e foi premiado com o primeiro lugar pela Sight and Sound em sua votação para o Melhor Filme do ano.
Charlotte Wells entrega uma direção muito bem ajustada, rica em detalhes nos seus mais variados takes, que dava aquele foco, aquela aproximação nos personagens, nos deixando ainda mais envolvidos pela sua história. A trilha sonora é certeira, trazendo vários clássicos que enriqueceu ainda mais a obra. Assim como a belíssima fotografia, que se destacava como um algo a mais do longa, fazendo aquele contraponto entre o feliz e o alegre com toda melancolia e tristeza.
"Aftersun" é uma grata surpresa, visto que eu não conhecia a diretora e tinha visto pouco sobre o filme. Porém, eu fui surpreendido positivamente, com um filme que entrega um drama na medida certa, sem exagerar e sem pesar a mão (pra não virar um melodrama forçado), com um texto muito bem escrito, muito bem amarrado nos diálogos, que por sinal estavam excelentes. Além do roteiro que é ótimo, as atuações que estão impecáveis e a trilha sonora que é magnífica. Posso afirmar que "Aftersun" é um dos melhores dramas que eu assisti nos últimos anos.
Obrigado Charlotte Wells! [05/03/2023]