Nada é mais assustador do que a realidade
por Aline PereiraA Mãe foi a primeira estreia entre os longas-metragens exibidos durante o 50º Festival de Cinema de Gramado em 2022, e mesmo sem saber do que ainda viria pela frente, não foi difícil adiantar, desde aquele momento, que o filme estrelado por Marcélia Cartaxo (A Hora da Estrela) seria um dos principais destaques da edição - e foi o que aconteceu. A combinação entre uma atuação excepcional da atriz e uma trama que toca muito fundo nas feridas do mundo real criou uma história difícil de se esquecer e, mais do que isso, de não se deixar estremecer de angústia, medo, revolta e, em algum nível, de uma forte “culpa coletiva”.
Com direção assinada por Cristiano Burlan (Mataram Meu Irmão), A Mãe acompanha a história de Maria (Marcélia Cartaxo), uma mulher que mora na periferia da cidade de São Paulo com o filho adolescente, Valdo (Dustin Farias). A vida dela muda completamente quando Valdo desaparece: ao retornar para casa após um dia de trabalho, Maria não encontra o filho por lá e a falta de notícias com o passar dos dias faz com que ela dê início a uma batalha própria e solitária para tentar encontrá-lo e obter respostas.
Questões de segurança pública e justiça são o principal tema nessa trajetória: à medida em que Maria se embrenha na busca pelo filho, se depara também com um sistema brutal. De um lado, está o descaso e a violência do Estado; do outro, a presença e o poder do crime organizado dentro das comunidades. Um embate que, potencializado pela desigualdade social, econômica e pelas falhas do governo, tem como resultado um sistema cruel e implacável, que elimina uma infinidade de vidas inocentes.
Marcélia Cartaxo é uma das maiores atrizes brasileiras
Em 1985, Marcélia Cartaxo fez uma estreia marcante nos cinemas interpretando Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, produção baseada no famoso livro de Clarice Lispector. Nos anos seguintes, dezenas de outros filmes e novelas vieram - acompanhados de uma longa lista de prêmios. Em 2019, a artista paraibana levou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado pela atuação em Pacarrete e, na edição de 2022, venceu novamente por A Mãe.
Nenhum desses prêmios vieram à toa: a habilidade de Marcélia para entrar com naturalidade em seus papéis é notável. Em A Mãe, interpretando Maria (nome que já nos dá a ideia de que se trata de uma história universal, que representa muitas pessoas), a atriz parece genuína do começo ao fim. Uma característica ainda mais fundamental em uma história que precisa dessa conexão para atingir completamente o objetivo de se aproximar muito mais da realidade - incluindo um dos trechos mais emocionantes em que, de fato, o filme assume um ar de documentário.
Para além disso, é impressionante como a atriz parece ter compreendido todo o universo de sua personagem. Assim, ainda que a história seja inegavelmente triste (porque é real demais), não há nada de “melodramático” nela e nem a sensação de que o filme está fazendo da tragédia apenas um espetáculo para entretenimento do público - uma característica que não é incomum em obras que buscam retratar a violência, a pobreza e a criminalidade no Brasil.
A fluidez com que Marcélia trabalha nos puxa rapidamente para a vida da personagem, parte nossos corações nos momentos trágicos e nos leva à indignação e à inquietação junto com ela - talvez aqui esteja o principal trunfo do filme: provocar incômodo sem precisar “incrementar” demais a realidade. A verdade é o que é. Nos resta confrontá-la. E é claro que roteiro e direção trabalham junto com a atriz para entregar esse resultado.
A Mãe se comunica diretamente com o mundo real
O luto é um aspecto da vida do diretor Cristiano Burlan que aparece muito no conjunto de sua obra: em Mataram Meu Irmão, o cineasta relembra o assassinato de seu próprio irmão em uma reflexão que fala sobre violência e sobre a vida nos bairros periféricos de São Paulo. Em 2011, a mãe de Burlan foi assassinada pelo parceiro, história contada no filme Elegia de Um Crime. “A Mãe vem da minha e de muitas outras mães que tiveram a vida de seus filhos ceifadas”, disse em entrevista ao AdoroCinema durante o Festival de Cinema de Gramado, onde, aliás, ele foi premiado com o troféu de Melhor Direção.
A dolorosa familiaridade com o tema fica visível em A Mãe justamente no viés tão realista. A jornada de Maria em busca do filho não é uma aventura de suspense ou ação, e a constatação dos fatos é muito mais importante do que se esperar por uma reviravolta novelesca. Nesse sentido, o sentimento de angústia é o que grita mais alto no desenrolar dos acontecimentos - à certa altura da história, a falta de perspectiva para a solução do problema torna a vida da protagonista um beco sem saída que é muito sufocante, à medida em que a única coisa que Maria deseja é saber se o filho está vivo ou morto.
Vale ressaltar aqui também a participação de Débora Maria da Silva, fundadora do Mães de Maio, movimento formado pelas famílias das vítimas dos ‘Crimes de Maio’, onda de conflitos violentos que, em 2006, fez mais de 600 vítimas, entre assassinados e desaparecidos. Débora entra no filme como uma personagem que conversa com Maria, mas nada do que ela diz é inventado. “Uma coisa é representar essa dor, outra é estar de frente com essa mãe, com a dor dela. [Na cena] é ela me chamando para a luta, isso me emocionou bastante”, relembrou Marcélia em conversa com o AdoroCinema.
Ainda durante o Festival de Cinema de Gramado, foi Débora Maria quem melhor traduziu a sensação que está no coração do filme: “Nós, mães, ficamos com a culpa da resposta que não temos. Uma mãe não está preparada para enterrar o filho, para esse desaparecimento forçado. Não somos números e nem parimos números (...) Temos uma segurança pública falida, que cresce em cima de corpos negros e pobres”, disse.
Assim, a relação entre mãe e filho no filme é como um símbolo máximo de força. Em uma luta que precisa ser de todos, o movimento inicial parte do instinto, do amor e de um senso de proteção que tem muito a nos ensinar.