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    A Substância
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    A Substância

    Demi Moore entrega atuação da carreira em A Substância, terror corporal extremo e subversivo sobre a indústria da beleza

    por Bruno Botelho dos Santos

    Logo em sua estreia no cinema, a diretora francesa Coralie Fargeat chamou bastante atenção com Vingança (2017), um filme brutal e subversivo de estupro-vingança (como é conhecido o subgênero do terror “rape-revenge”) que colocou seu nome entre os mais promissores do terror. Essas expectativas foram mais do que cumpridas por Fargeat com o transgressivo A Substância (2024), horror corporal feminista estrelado por Demi Moore que causou burburinho no Festival de Cannes 2024 e se consagrou com prêmio de Melhor Roteiro.

    O body horror feminista e A Substância, de Coralie Fargeat

    MUBI / Imagem Filmes

    Em A Substância, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma celebridade em declínio que enfrenta uma reviravolta inesperada ao ser demitida de seu programa fitness na televisão. Desesperada por um novo começo, ela decide experimentar uma nova e misteriosa droga que promete replicar suas células, criando temporariamente uma versão mais jovem e aprimorada de si mesma, Sue (Margaret Qualley). Agora, a atriz se vê dividida entre suas duas versões, que devem coexistir enquanto navegam pelos desafios da fama e da identidade.

    O terror sempre foi uma das formas mais poderosas no cinema para discutir sobre o corpo e nossas implicações sobre ele. Por isso mesmo, surge o horror corporal (o tão famoso "body horror"), que tem como grande mestre David Cronenberg.

    É nítido que o olhar masculino sempre dominou o horror corporal no cinema. Mas é interessante como nas últimas décadas, as mulheres começaram a tomar conta das narrativas sobre seus próprios corpos, em diversas produções feministas. Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis; Garota Infernal (2009), de Karyn Kusama; Grave (2016) e Titane (2021) de Julia Ducournau; Rabid (2019, remake de Enraivecida na Fúria do Sexo de Cronenberg), das irmãs Jen e Sylvia Soska; Fresh (2022), de Mimi Cave e A Primeira Profecia (2024), de Arkasha Stevenson são alguns exemplos.

    A Substância é um horror corporal visceral sobre a autodestruição causada pela indústria da beleza

    MUBI / Imagem Filmes

    O horror corporal é "o veículo perfeito para expressar a violência que todas essas questões femininas representam", explica Coralie Fargeat em entrevista à Variety. Que violências são essas? A Substância explora como o envelhecimento impacta as mulheres e causa uma perigosa crise de identidade, com a indústria de entretenimento e uma sociedade patriarcal que reforçam padrões de beleza diariamente e as descartam quando elas ficam mais velhas – pois “não atendem” mais esses modelos.

    Coralie Fargeat brinca e subverte o olhar fetichista masculino sobre o corpo feminino como uma sátira, e se aproveita de toda potência do horror corporal para mostrar essa autodestruição das mulheres na tentativa de alcançar (ou recuperar) um padrão de beleza com a violação do próprio corpo.

    Ela não tem vergonha de abraçar o mais grotesco e visceral do horror corporal conforme essa espiral de destruição da protagonista Elisabeth Sparkle entra em cena. Com um trabalho impressionante de efeitos práticos, próteses e maquiagem, A Substância é ousado e vai ao extremo, assim como os processos estéticos na indústria da beleza, com diversas cenas nojentas, sangrentas e perturbadoras – que nos levam de volta ao melhor do body horror nos anos 80, especialmente pela transformação que remete ao que David Cronenberg fez em A Mosca (1986).

    É um passeio selvagem e com muita personalidade de Coralie Fargeat, que explode em um final catártico, corajoso e violento, no qual a diretora faz sangue jorrar pela tela e apresenta sua figura monstruosa construída pela própria sociedade.

    Demi Moore entrega melhor atuação da sua carreira em terror sobre crise de identidade

    MUBI / Imagem Filmes

    Demi Moore entrega a melhor atuação de sua carreira em A Substância, onde ela precisa literalmente se despir de corpo (com as implicações físicas da trama) e alma (em todos os aspectos psicológicos que sua personagem é afetada). De certa forma, é interessante como Moore assume uma versão de si mesmo da vida real, uma atriz de sucesso em Hollywood que foi esquecida pela indústria com o passar do tempo.

    É aqui que entra o aspecto de ficção científica com a substância que parece resolver todos esses problemas de Elisabeth Sparkle. Ela gera uma nova versão dela mesma, mais jovem e perfeita, e pode dividir seu tempo de uma semana para cada. Essa é Sue, com uma atuação deslumbrante de Margaret Qualley, que sacia todos os desejos da protagonista em voltar aos dias de glória, quase uma releitura moderna de O Retrato de Dorian Gray.

    "Já sonhou com uma versão melhor de si mesmo? Você. Só que melhor em todos os sentidos. Você precisa experimentar este novo produto, A SUBSTÂNCIA. Mudou a minha vida"

    Esse “duplo” normalmente funciona como um reflexo de nós mesmos. Em A Substância, é interessante como sempre é frisado que elas são a mesma pessoa, uma linha tênue de identidade que acaba sendo rompida. A criação de Sue surge em consequência do ódio que a protagonista sente de seu próprio corpo após ser descartada pela indústria, e sociedade como um todo, por ser “velha demais”. O que se mostra como uma solução inicialmente, já que Sue é tudo que Elisabeth almeja novamente, leva a um processo de autodestruição e combate de você mesmo.

    No livro "O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres", Naomi Wolf explica que "o mito da beleza não tem nada a ver com as mulheres. Ele gira em torno das instituições masculinas e do poder institucional dos homens". Isso é bem representado pelos asquerosos e abusivos personagens masculinos em A Substância, que estão sempre julgando e explorando as mulheres pelo padrão de beleza.

    A partir do personagem repugnante de Dennis Quaid, Harvey, conseguimos ver como eles são medíocres, mas estão em posições de poder. Coralie Fargeat apresenta uma sátira incisiva contra esses comportamentos na indústria de entretenimento, inclusive se apropriando de muitos close-ups no corpo de suas protagonistas, especialmente Margaret Qualley, como uma maneira de subverter e causar reflexão sobre esse olhar masculino de objetificação.

    Vale a pena assistir A Substância?

    MUBI / Imagem Filmes

    Coralie Fargeat se estabelece como um dos nomes com mais personalidade no terror contemporâneo com A Substância. É um olhar subversivo e visceral sobre como a sociedade e a indústria de entretenimento estabelecem padrões de beleza que tratam as mulheres como objeto e as descartam como lixo quando elas envelhecem, causando sua autodestruição.

    A Substância é uma sátira divertida e ácida sobre o comportamento abusivo dos homens e seu olhar fetichista, e progressivamente abraça o mais desconfortável e provocativo do horror corporal. Com uma atuação poderosa de Demi Moore, o filme de Coralie Fargeat vai aos extremos sem limites, com cenas sangrentas e perturbadores de body horror, para representar como o corpo da mulher é violentado pela indústria da beleza.

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