Desde que foi anunciado, Mickey 17 gerou grande expectativa por ser o novo projeto de Bong Joon-ho, diretor aclamado que conquistou o Oscar com Parasita, e por contar com Robert Pattinson como protagonista. Além disso, o filme marcava a entrada do cineasta no território dos grandes blockbusters, com um orçamento significativamente maior do que seus trabalhos anteriores. Inicialmente previsto para 2024, o longa sofreu adiamentos misteriosos, alimentando rumores sobre problemas em sessões-teste e preocupações dos executivos da Warner Bros. quanto à recepção do público. Algumas teorias sugeriam que o filme não se encaixava no molde de um blockbuster tradicional, enquanto outras apontavam dificuldades na pós-produção. Bong, por sua vez, desmentiu essas especulações, mas ao assistir ao longa, é difícil ignorar a sensação de que esses rumores tinham algum fundamento.
Fiel ao seu estilo, Bong Joon-ho constrói uma narrativa repleta de subtextos sociais e políticos, trazendo temas como colonialismo, exploração, precarização do trabalho e neocolonialismo. No centro da trama está a ideia do descarte humano, onde a tecnologia da clonagem transforma indivíduos em meros recursos substituíveis. O personagem de Mark Ruffalo, Kenneth Marshall, funciona como uma evidente alegoria do autoritarismo e do populismo, traçando paralelos diretos com a figura de Donald Trump. A escolha do ator para o papel não parece acidental, visto que Ruffalo sempre foi um crítico vocal do ex-presidente. O filme também se aprofunda nas implicações morais da clonagem, levantando questões sobre identidade e consciência. O conceito dos "múltiplos" – cópias de um mesmo indivíduo que compartilham memórias, mas desenvolvem personalidades distintas – abre um debate instigante. A existência simultânea de Mickey 17 e Mickey 18, ambos carregando as memórias do original, levanta a pergunta: quem tem o direito de continuar vivendo? Esse conflito é explorado com profundidade, especialmente no clímax do filme, onde a narrativa desafia o público a refletir sobre a fragilidade da identidade humana frente à tecnologia.
No entanto, a grande questão que permeia Mickey 17 é a própria assinatura do diretor. Enquanto se esperava um thriller sci-fi repleto de tensão e ação, Bong opta por utilizar a ficção científica apenas como pano de fundo para discutir suas temáticas sociais. O resultado é um filme que foge das convenções de um blockbuster tradicional e se aproxima mais do estilo reflexivo e crítico característico do cineasta. Essa abordagem, embora coerente com sua filmografia, pode frustrar aqueles que esperavam uma experiência mais voltada para a ação e o entretenimento. Há um esforço perceptível em condensar diversas críticas sociais dentro da narrativa, o que, por um lado, enriquece o filme, mas, por outro, pode torná-lo excessivamente denso. Algumas dessas críticas são bem desenvolvidas, enquanto outras acabam se perdendo no meio de tantas subtramas. O resultado é uma obra que, apesar de intelectualmente estimulante, pode parecer dispersa em determinados momentos.
O elenco, no entanto, é um dos grandes trunfos do filme. Robert Pattinson entrega uma performance impressionante, conseguindo diferenciar nuances entre seus diferentes "eus", enquanto Mark Ruffalo abraça a caricatura de seu personagem de forma eficaz. O restante do elenco complementa bem a história, trazendo carisma e peso dramático para um filme que exige interpretações fortes para sustentar sua complexidade temática. Visualmente, Mickey 17 apresenta um design de produção ambicioso, mas sofre com algumas inconsistências. Os efeitos visuais, essenciais para a construção do universo futurista da história, em alguns momentos não parecem totalmente polidos. Considerando os rumores de que Bong ainda estava trabalhando na pós-produção meses antes do lançamento, é possível que algumas dessas falhas sejam reflexo desse processo apressado. Embora não comprometam a experiência como um todo, certos momentos revelam um uso excessivo de CGI que poderia ter sido melhor integrado à cinematografia.
Diante de tudo isso, fica claro por que a Warner Bros. poderia ter tido receios quanto à recepção do público. Mickey 17 tem a embalagem de um blockbuster, mas seu conteúdo se distancia do que se espera de um filme de grande orçamento. Bong Joon-ho não cedeu às pressões comerciais e fez um filme que, apesar da escala ampliada, continua sendo uma obra profundamente autoral. Sua recusa em suavizar sua crítica social e sua abordagem complexa da narrativa tornam Mickey 17 um filme instigante, mas que pode dividir opiniões. Para aqueles que apreciam o estilo do diretor e buscam uma ficção científica com substância, o longa oferece um rico campo para discussões. No entanto, para um público que esperava algo mais acessível e voltado para o entretenimento puro, o filme pode parecer arrastado e até frustrante em alguns momentos.
No fim, Mickey 17 não é um filme que se destaca por sua temática sci-fi, mas sim pelo debate ético e social que propõe. Bong Joon-ho entrega um filme ambicioso e repleto de camadas, mas talvez tenha tentado abarcar mais temas do que a narrativa conseguia sustentar. O resultado é uma experiência cinematográfica densa, que desafia o espectador, mas que poderia ter sido melhor equilibrada. A falta de experiência do diretor com blockbusters também se faz sentir em alguns aspectos técnicos e na condução do ritmo, o que pode afetar a imersão de quem não está acostumado ao seu estilo. Ainda assim, é uma obra intrigante, que reforça a identidade do cineasta, mesmo que nem todos os elementos se encaixem perfeitamente.