O ESPAÇO E O SONHO
Filmes nacionais vêm ganhando mais projeção; tem sido gradual. No entanto, qual seria o porquê de eles não figurarem no grande circuito de exibição de cinema.
“Marte Um” se encaixa nesse estigma que marca as produções brasileiras. Dirigido e escrito por Gabriel Martins, o título foge das principais temáticas tratadas no filme.
Há de se pensar em algo qualquer de ficção científica ou de aventura espacial. Existe uma parte disso na personagem de Deivinho (vivido pelo ator Cícero Lucas), que sonha em ser astrofísico e frequentar uma palestra voltada aos assuntos dos planetas, meteoros e galáxias.
A história tem os pés bem fincados na terra, abordando o cotidiano de uma família brasileira de classe média baixa. Em muitos momentos, haverá coincidências reais vividas pelas famílias dos espectadores.
Tércia é a típica mãe dedicada ao marido e aos filhos. Além disso, divide seu tempo com o trabalho e as conversas em torno da mesa de casa. É na mesa de casa que certos assuntos, nem sempre bem deglutidos, são postos à tona.
Wellington é o chefe de família que trabalha num condomínio e sonha em ver seu filho, Deivinho, como um craque de futebol. Dá todo incentivo, pois Deivinho bate uma bolinha. Mas, a cabeça do filho está literalmente nas estrelas. O jovem vê vídeos na Internet sobre o que o realmente fascina: a astrofísica.
Até que um belo dia, sua irmã Eunice, (papel de Camilla Damião) ajuda a dar um empurrãozinho no sonho de Deivinho, bancando uma palestra a ser dada em São Paulo.
Nenhum dos pais sabe dessa investida; é um segredo. Outro segredo Eunice guarda em sua vida pessoal ao se envolver com Joana (Anna Hilário) e ficar relutante em contar isso para os pais. Então, medo e disposição rumo à autonomia plena se misturam.
O filme tem uma narrativa lenta, de estruturação densa, enquanto a história se monta. Se você é daqueles que preferem ação, esse filme não é o ideal. Para quem quer ter a paciência testada, recomenda-se ver o desenvolvimento da película.
As cenas se passam em Belo Horizonte, o que confere mérito ao filme, pois o drama da família é o mesmo vivido atualmente nos lares. Até seria um clichê se fosse escolhido o eixo Rio-São Paulo.
Em dado momento, Tércia se transforma do alicerce para uma antena receptora de energias. Chega a pensar que é uma pessoa azarada, que adquiriu más energias. Coincidência ou não, esse novo sentimento funciona como um gatilho. O que estava escondido, vem à tona.
Wellington perde o emprego e tem a decepção de Deivinho largar a oportunidade de jogar futebol. Hora de Eunice alçar outros voos. Parece que tudo desaba. É nesse instante que o filme mostra a importância de sonhar, de dar a volta por cima, do recomeço e de acreditar.
Mesmo que o título faça referência a uma missão real para o espaço, chamada de “Marte Um”, não seria a hora de deixar a nova geração seguir suas vontades e ambições? Saber o gosto da liberdade...
Pelo menos, é o que (in)conscientemente faz Wellington em relação ao filho Deivinho, o qual sem ter coragem para mostrar seu desejo, acata parcialmente o que o pai quer.
Entretanto, não se pode esquecer que nem sempre o futebol pode ser a solução para todos os problemas financeiros. Sim, Deivinho e seu pai não têm o mesmo interesse pela bola.
A produção aborda as questões frequentes que atemorizam o contexto de muitos. A questão econômica, sem grandes ganhos para levar uma vida digna; um orçamento que incomoda todo mês; as poucas opções oferecidas nas periferias; a sombra da violência e das drogas.
Cada membro da família é uma parte que se junta para transmitir uma mensagem de que não se pode desistir dos sonhos. Vemos um Wellington “reformado”, o que é incrível, enquanto Tércia dorme ou sonha.
Um fecho de ouro: todos os protagonistas são negros, com atuações mais do que aprovadas de Carlos Francisco, Rejane Faria e Camilla Damião. Eles trazem força, a mesma de que precisamos para enfrentar nossos desafios cotidianos num país mergulhado no caos, na divisão e com falta de direção.