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    Marte Um
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Marte Um

    Existe um universo dentro de cada casa

    por Aline Pereira

    Existe uma beleza e um poder na simplicidade e no afeto das relações humanas que são difíceis de explicar, mas que são sentidos em um estalar de dedos. Marte Um realça esse poder ao contar a história de uma família no interior de Minas Gerais cujos dilemas e alegrias são tão genuínos que não há outra alternativa a não ser se deixar levar. Dirigido pelo cineasta Gabriel Martins, o filme foi um dos principais destaques entre as produções selecionadas para o Festival de Cinema de Gramado em 2022 e, não à toa, teve a sessão mais aplaudida.

    Marte Um, que teve sua estreia no festival internacional de Sundance, pega o nome emprestado de um programa espacial que existiu de verdade e foi lançado em em 2012, com o objetivo de levar uma tripulação humana para a colonização do planeta Marte. É a partir daí que conhecemos a história de Deivinho (Cícero Lucas), um garoto que sonha ser astrofísico e participar desta missão - mas seu pai tem outros planos. O porteiro Wellington (Carlos Francisco) quer que o filho se torne um grande jogador de futebol e não poupa esforços para ajudá-lo neste caminho, mesmo contra sua vontade.

    A mãe da família é Tércia (Rejane Faria), uma diarista que, ao ser “vítima” de uma situação inesperada, mergulha em uma crise existencial tão profunda que a faz achar que está eternamente amaldiçoada. A família Martins se completa com a inquieta Eunice (Camilla Damião), a filha mais velha que está na faculdade de direito e vive uma nova paixão, que marca uma passagem importante para a vida adulta e para a própria independência - questões que também afetam a dinâmica familiar.

    Ao se concentrar nesse grupo, Marte Um não se apoia em grandes reviravoltas e nem em dramas novelescos, mas sim na potência dos personagens - tudo acontece com tanta naturalidade entre eles que a sensação de estar acompanhando pessoas de verdade é magnética. Um triunfo incrível do diretor Gabriel Martins que, ao apresentar a família de forma tão sensível (tanto no roteiro, quanto nas escolhas estéticas), cria uma conexão direta com quem está assistindo: em um momento ou em outro, é difícil não se encontrar dentro daquela casa.

    Marte Um é uma ode ao poder do afeto em tempos difíceis

    A história do longa começa imediatamente após o anúncio das eleições presidenciais de 2018, momento de incerteza sobre o futuro, especialmente para pessoas em situações vulneráveis socialmente e economicamente. É o caso dos Martins, uma família de classe média baixa e formada por pessoas negras, cujas oportunidades, em um país estruturalmente racista, estão mais distantes. Nesse sentido, o sonho cósmico de Deivinho parece inalcançável, enquanto o desejo do pai reflete o desejo de ascensão.

    Enquanto cada membro da família lida com percalços particulares, é a rede de apoio criada entre eles que mantém a casa de pé. Talvez esta seja o centro da história de Marte Um: os contextos externos, claro, são decisivos para o rumo das situações, mas a força do laço de afeto entre as pessoas é parte fundamental para “amenizar” (se é que podemos usar essa palavra), o impacto dessas situações impostas. “A gente dá um jeito”, diz Wellington em uma das cenas mais tocantes de Marte Um.

    Ainda neste tema, Marte Um toca no tema fundamental das diferentes formas de demonstrar afeto, que são demonstradas ao longo de toda a histórias, mas especialmente em um dos momentos em que a filha, Eunice, está deixando a casa dos pais. A reação da família à saída do “ninho” ilustra essas diferenças com uma simplicidade e complexidade impressionantes (mas não daremos spoilers, claro). Wellington, Tércia, Deivinho e Eunice são personagens completos em si mesmos e a forma como reagem um ao outro deixam clara a profundidade das relações e no que elas se sustentam.

    Aqui, vale até pontuar uma declaração do próprio diretor, Gabriel Martins, ao AdoroCinema: “Sinto que vivemos um momento muito individualista em que a polarização não deixa as pessoas se comunicarem. O Brasil vem sendo muito maltratado e parece que esquecemos o afeto, que sentimos emoções. Marte Um vem para trazer essa ideia de volta, da importância de olhar um para o outro, de sonhar”, diz. Concordo.

    Bons personagens e grandes atuações

    Embora o contexto social e político do mundo real esteja sempre permeando a vida da família (e isso fica dolorosamente claro, por exemplo, nas relações de trabalho que Tércia e Wellington têm com seus empregadores), o coração da história está nos protagonistas e na sintonia entre os atores que os interpretam. Marte Um tem artistas talentosos que, individualmente, fazem desses personagens figuras inesquecíveis, mas eles são ainda melhores como um grupo. Pais, filhos e irmãos estabelecem relações complexas que desmancham a ideia de que conflitos devem ser evitados - ao contrário, eles são parte do processo de proteção e confiança que eles estabelecem uns com os outros.

    Particularmente, a jornada a Tércia é muito rica de detalhes. Habituada a uma vida de estar sempre na posição de cuidar dos outros (em casa ou no trabalho como diarista), a personagem de Rejane Faria passa por uma transformação interna gigante, mas discreta e que, certamente, provocará alguma identificação em muitas mulheres, sobretudo, mães: “responsável” pela manutenção dos membros da casa, Tércia encontra pouco espaço para externar suas crises e, com isso, precisa encontrar, individualmente, o mesmo caminho. “Estou viva”, diz a mãe em outro momento impressionante da história.

    Marte Um é um filme sobre a persistência da esperança

    O desejo que Deivinho tem de se tornar um astrofísico conecta a história de uma pequena família a algo muito maior. A vontade de explorar o universo, de conhecer o infinito, não intimida o jovem e, ao contrário, faz pensar na importância de não limitar os próprios sonhos, ainda que eles pareçam impossíveis.

    “Em um meio que tira tudo de nós, a gente entende que a nossa força é que faz as coisas acontecerem. A tão falada resistência está na nossa vida todos os dias para mostrar que, apesar de tudo, ainda existe um caminho”, me disse Rejane Faria em entrevista no Festival de Gramado. E é este o caminho: Marte Um é uma grande obra que nos ajuda a enxergar a beleza de quem -e do que- está logo ao lado.

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