⚠ TEM SPOILERS ⚠
Anatomia de uma Queda (Anatomie d'une Chute / Anatomy of a Fall) 2023
"Anatomia de uma queda" é dirigido pela francesa Justine Triet (diretora de "Sibyl", de 2019) com um roteiro que ela co-escreveu com Arthur Harari (roteirista de "Sibyl"). A história nos leva até Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e Samuel (Samuel Theis), seu marido francês, que vivem juntos com Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos do casal, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes. Quando Samuel é encontrado morto do lado de fora da casa, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio, e Sandra se torna a principal suspeita.
O cinema francês volta ao grande destaque cinematográfico na temporada de premiações com "Anatomia de uma queda", que estreou no Festival de Cinema de Cannes em 2023, onde ganhou a Palma de Ouro e o prêmio Palm Dog e concorreu ao Queer Palm. O longa-metragem vem ganhando cada vez mais notoriedade e vem recebendo inúmeros elogios da crítica especializada, com elogios à direção e roteiro de Justine Triet e principalmente pela atuação de Sandra Hüller.
O filme já vendeu mais de um milhão de ingressos somente na França, e consequentemente obteve um sucesso significativo em prêmios internacionais, ganhando dois Globos de Ouro de Melhor Roteiro e Melhor Filme Estrangeiro. O longa também ganhou seis prêmios, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor no European Film Awards, e recebeu sete indicações no BAFTA, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. No Oscar, o filme recebeu cinco indicações, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz e Melhor Roteiro Original.
Agora eu me pergunto: qual é o verdadeiro motivo de "Anatomia de uma queda" ter se tornado um filme de tanto sucesso?
Vou começar destacando o roteiro da Justine Triet (junto com Arthur Harari) e a forma como ela idealizou e criou todo aquele universo. A principal característica do roteiro é sem dúvida a complexidade, a ambiguidade, a inteligência e a competência em criar um ambiente misterioso, intrigante, tenso, envolto em um drama carregado com o suspense, que imediatamente já se instala no ar com aquela investigação que já começa baseada em nossa curiosidade em começar a tentar desvendar todos os mistério daquela morte. O primeiro ato do filme surpreende e se destaca pela eficácia em justamente criar um labirinto psicológico que flerta com a complexidade e a curiosidade da mente humana em querer logo descobrir algo. Nesse ponto já entramos no suspense e na psicologia que é criada a partir de todos os relatos iniciais, algo que me remete à um excelente livro de suspense e psicologia que li no ano passado - "A Paciente Silenciosa" (do autor Alex Michaelides). Inclusive eu indico o livro para quem gosta do tema.
Podemos considerar que a Justine cria o retrato de uma mulher que é a principal suspeita pela morte do marido, porém se mantém forte, safa, sagaz, principalmente por todo o julgamento que ela é submetida. E nesse ponto o roteiro se utiliza de suas artimanhas para nos mostrar como uma pessoa tenta provar sua inocência perante às possíveis provas de incriminação. Também acredito que a diretora dá uma certa cutucada no feminismo e no machismo ao criar um drama potente, que mostra uma mulher poderosa que é suspeita porém se mantém lúcida de seus atos. Aqui a diretora cria um tema que subverte os papéis de gênero. Outro ponto é a forma como essa mesma mulher forte e aguerrida também se mostra frágil, vulnerável, por estar sempre tentando defender a sua tese, pois no mesmo momento que ela está sendo interrogada ela também está se desmoronando ao reviver às profundezas da sua relação conturbada com o marido.
"Anatomia de uma queda" se divide em duas partes: a primeira hora, logo após a morte, o filme constrói todo o seu terreno pautado no investigativo, no depoimento local, em reunir provas daquele ocorrido. Ou seja, nesse ponto o ritmo do filme tende a cair bastante, fica mais lento, mais arrastado, o que fatalmente poderá cansar, pois logicamente você vai precisar de mais paciência e bastante foco para ir desvendando e juntando as peças desse quebra-cabeça. Já na segunda hora do filme: é onde temos aquela passagem de tempo de um ano, e já estamos na parte das audiências no tribunal, tomando o depoimento de cada pessoa que de certa forma esteve envolvida no caso.
Nessa segunda parte do filme já temos uma abordagem mais enfática no caso, que logo vai nos revelando segredos do casal que até então eram desconhecido. Dessa forma o roteiro voltar a crescer e toma um novo fôlego, saindo do marasmo da primeira hora e mergulhando em um drama jurídico. Nesse ponto o roteiro de Justine volta a brilhar, quando ela deixa de lado apenas às circunstâncias das investigações iniciais e nos mergulha em uma jornada inquietante, intrigante, desgastante, com um drama e uma construção psicológica.
Filmes de tribunais são difíceis de construir, de se sustentar, de prender o espectador com o tema em questão, de conseguir segurar o interesse na história que está sendo desenrolada. Na maioria das vezes é uma temática que se não for bem desenvolvida fatalmente vai acabar caindo no marasmo, no enfadonho, perdendo cada vez mais a sua força. "Anatomia de uma queda" tinha tudo para ser apenas mais um desses inúmeros filmes investigativos de tribunais que sofre com tudo que mencionei anteriormente, já que sua primeira hora é instigante mas sofre com o ritmo lento e arrastado. Porém, quando entramos em um thriller de tribunal o roteiro volta em sua potência máxima, já que ele passa a brincar com o espectador e a sua capacidade de desvendar o crime. Pois é óbvio que inicialmente todos iriam desconfiar da própria Sandra, por ser a esposa, por possivelmente o marido sentir ciúmes dela, por ela nutrir um possível interesse em mulheres. Logo após já somos tomado pela dúvida a respeito dela e do advogado, já que ela o conhece há algum tempo e parece ter um certo interesse no ar. Logo após já estamos analisando o possível suicídio pelo fato das aspirinas, do cachorro e de todo o depoimento do Daniel.
A cereja do bolo é aquela construção do drama, do investigativo, da tensão, do suspense, do psicológico, do roteiro sempre querer nos pregar uma peça, nos fazer levantar suspeitas. Suspeitas essas que acreditamos fielmente ser culpa da Sandra, ainda mais depois que descobrimos as brigas de seu relacionamento e seu interesse em mulheres. Mas é nesse ponto que o roteiro começa a dissecar aquele relacionamento que soa dúbio, pois a intenção do filme não é chegar no final e entregar tudo de bandeja e mastigadinho para o espectador (como assisti recentemente em "Saltburn"), tanto que em nenhum momento temos cenas com flashbacks mostrando realmente o que aconteceu na cena morte. A intenção é fazer com que nós criássemos as nossas interpretações e tirássemos as nossas próprias conclusões à respeito de todo o acontecimento na trama. Aqui a intenção é justamente criar um labirinto psicológico que confronta o assassinato, o suicídio e o possível acidente, nos obrigando a colocar tudo em uma balança. É nessa pauta que o filme progride em todo o seu tempo, deixando tudo no ar e encerrando com uma final ambíguo.
E aqui entra um ponto que pode desagradar o público, já que na maioria das vezes as pessoas estão acostumadas com filmes fechadinhos, com começo, meio e fim. Pode ser questão de gosto próprio, mas particularmente eu prefiro quando o filme explora a minha capacidade cognitiva, que me obriga pensar, analisar, criar situações em minha mente para tentar entender e desvendar tais fatos. Nesse ponto fica muito claro que esta é principal intenção do roteiro, em propor uma discursão que não enfatiza 100% da verdade, já que aqui a verdade pode ser ressignificada, incognoscível e incerta, já que a Justine trabalha um roteiro calçado com incertezas, dúvidas, inconclusões, que é justamente a sua intenção para prender o espectador em busca de respostas. Tudo isso nos causa agonia, desconforto e também pode causar frustração, já que no fim o filme termina apresentando mais dúvidas do que respostas, o que pode ser uma falha para uns como pode ser o ponto alto para outros.
Todo o sucesso e todos os prêmios de "Anatomia de uma queda" não seria possível sem a presença de Sandra Hüller (vencedora do European Film de melhor atriz por "Toni Erdmann", de 2017). É impressionante a performance da Sandra ao incorporar uma mulher que é carregada emocionalmente, dramaticamente, cheia de camadas, cheia de mistério, cheia de ambiguidade, que se mostra fechada em até certo ponto, que desperta incertezas, suspeitas e curiosidades por todos os lados. Sandra constrói uma personagem que divide o público, que muitos acreditam em sua versão dos fatos e outros já duvidam. A cena da discursão entre ela e o marido na noite antes do ocorrido, que foi reconstituída no tribunal, mostra uma atuação poderosíssima da Sandra Hüller. Este é o poder e a força da sua atuação, que naturalmente está em um alto nível de excelência, e que merecidamente foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz.
Swann Arlaud ("Uma Vida Sem Ele", de 2022) contribui muito bem ao lado da Sandra, representando aquele curioso e enigmático advogado de defesa.
Milo Machado Graner ganha a importância do seu personagem ao longo da trama e se destaca mais na parte final. Vale destacar aquela cena dele com o cachorro, que foi surpreendente e até comovente.
Antoine Reinartz ("Oh Mercy!", de 2019) me surpreendeu pela potência de sua atuação na pele do promotor de justiça. Suas cenas durante o julgamento surpreende pelo debate acusatório, por compor diálogos e discursões em uma velocidade que era difícil até de acompanhar nas legendas (que por sinal o idioma francês deixa a sua atuação ainda mais elegante).
Samuel Theis ("Softie", de 2021) tem um tempo menor de tela, mas em suas aparições ele conseguia manter o nível de atuação ao contracenar com a Sandra Hüller. Destaco também a mesma cena que destaquei da Sandra, aquela cena da discursão, que ele foi muito bem.
Falando das qualidades técnicas do filme:
A cinematografia é muito boa, a fotografia tem enquadramentos muito satisfatórios, até porque se entrarmos na direção de arte iremos nos deparar com um cenário muito belo, envolto um ambiente gelado, onde a própria fotografia vai se destacar com focos mais cinza, mais frio, com cores mais frias. Já por outro lado a própria direção de arte nos entrega um cenário mais fechado na segunda parte do filme, que em contrapartida contracena com uma fotografia mais focada nas expressões e emoções dos personagens. Já a trilha sonora tem a sua dose de contribuição, sendo a responsável em nos deixar incomodados em várias cenas. O que dizer daquela versão de "P.I.M.P", do 50 Cent, que literalmente me deixou incomodado.
Curiosidades:
"Anatomia de uma queda" foi lançado em 379 cinemas na França, onde estreou em segundo lugar nas bilheterias, arrecadando mais de US$ 2 milhões e vendendo 262.698 ingressos, atrás de "Barbie" (288.185 ingressos) e à frente de "Oppenheimer" (231.550 ingressos). O longa teve a melhor abertura para um vencedor da Palma de Ouro desde "The Class" (2008), que vendeu 358.000 ingressos na França durante seu fim de semana de estreia. Em seu segundo fim de semana, o filme ficou em segundo lugar, atrás de "The Equalizer 3" e à frente de "Barbie", acumulando 608.913 ingressos vendidos. Em seu terceiro fim de semana, o filme alcançou o primeiro lugar nas bilheterias francesas com 191.392 ingressos em 738 cinemas, acumulando 800.283 ingressos vendidos, e arrecadando US$ 5,7 milhões. Em setembro de 2023, o longa-metragem ultrapassou 1 milhão de entradas na França um mês após seu lançamento nos cinemas, tornando-se o sétimo vencedor da Palma de Ouro - e o terceiro vencedor da Palma de Ouro francesa - a ultrapassar a marca de 1 milhão de entradas na França desde 2000.
Por fim, "Anatomia de uma queda" é um filme que mistura várias camadas do ser humano e consegue construir um roteiro inteligente, potente, complexo, intrigante e curioso, que mostra um procedimento inteligente e solidamente elaborado para se mostrar presente durante todo o drama familiar. Por outro lado eu não o vejo como uma obra inédita, autêntica, revolucionária, já que existem outros thrillers de tribunal que aborda muito bem essa temática de julgamento investigativo, sendo com finais abertos ou não.
Por mais que a primeira hora do filme o ritmo seja lento e arrastado, mas a segunda hora compensa com um ótimo thriller de tribunal imerso em questões misteriosas, complexas e psicológicas, que contribui um ótimo desfecho final.
O final de "Anatomia de uma queda" fica em aberto e abre espaço para você criar a sua interpretação e, consequentemente, a sua conclusão à respeito de quem é a vítima e quem é o vilão no final da história. Um final que me remete à outra obra-prima literária que também li no ano passado - "Verity" - da poderosa Colleen Hoover.
[23/01/2024]