Um conflito de versões e dúvidas sobre a verdade
por Bruno BotelhoO que é realidade e o que é ficção? Quando estamos falando de um processo judicial ou condenação de uma pessoa, é natural pensar que não existe tanta margem para imaginação e que apenas fatos estão sendo apresentados. Anatomia de uma Queda, filme de Justine Triet vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, chega para quebrar essas percepções e levantar interpretações, não apenas dos personagens em tela, mas também o julgamento do público com a história contada.
Em Anatomia de uma Queda, Samuel (Samuel Theis) é encontrado morto na neve do lado de fora do chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, e seu filho de onze anos com deficiência visual. A investigação conclui se tratar de uma "morte suspeita": É impossível saber ao certo se ele tirou a própria vida ou se foi assassinado. A viúva é indiciada, tendo seu próprio filho no meio do conflito: entre o julgamento e a vida familiar, as dúvidas pesam na relação mãe-filho.
O filme começa com Sandra recebendo uma jornalista em sua casa para falar sobre sua carreira. Logo o papo descontraído entre as duas é atrapalhado pelo som alto que vem do sótão, onde seu marido Samuel coloca para tocar repetidamente P.I.M.P. do 50 Cent (mas um cover por Bacao Rhythm & Steel Band) como provocação enquanto trabalha na reforma do chalé deles. Com isso, a entrevista é interrompida e adiada, e Sandra resolve tirar um cochilo. Pouco tempo depois, enquanto passeava com seu cachorro, o filho do casal, Daniel, encontra o corpo de Samuel morto na neve do lado de fora da casa.
Um começo chocante e instigante que já instaura dúvidas na cabeça do público: Samuel caiu acidentalmente do chalé? Cometeu suicídio? Foi empurrado por Sandra? São questões que o filme abraça de forma complexa e desenvolve sem pressa, focado nos diálogos, em suas 2 horas e 31 minutos.
Podemos dividir Anatomia de uma Queda de duas meneiras distintas. A primeira parte começa de forma mais lenta, focado na investigação e na reconstituição do ocorrido. Já a segunda parte do filme nos leva ao julgamento da morte de Samuel, com Sandra suspeita e acusada de assassinato, tendo que provar sua inocência com ajuda de Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud).
Como provar algo sem evidências irrefutáveis? Essa é a chave da trama, onde não temos uma verdade definitiva ou resposta pronta, mas uma apresentação de diferentes versões. A diretora Justine Triet sabe trabalhar muito bem com as incertezas para prender o público e causar uma agonia constante em busca de respostas. Por isso, somos colocados praticamente como um membro do júri colhendo as informações.
Conforme a trama avança, ela fica mais desconfortável e sombria. Entramos na intimidade do casal Sandra e Samuel – e nos conflitos e relação abusiva entre eles. Inclusive, o roteiro de Anatomia de uma Queda foi escrito em colaboração por Justine Triet e Arthur Harari, que também são um casal na vida real, então conseguem explorar melhor as complexidades dos personagens e analisar a “queda” deste relacionamento. No final das contas, o julgamento de um crime passa a ser, na verdade, de um casamento.
É interessante como a narrativa subverte nossas pré-concepções, especialmente invertendo as construções sociais dos papéis de gênero em Anatomia de uma Queda. Por isso, a produção entra no psicológico dos personagens e examina todas as contradições.
Enquanto Sandra é uma mulher bem-sucedida com sua carreira de autora, Samuel está frustrado com o rumo que sua vida tomou, se dedicando à reforma do chalé e ao filho, pedindo mais tempo para retomar sua carreira. Tanto que eles têm uma briga violenta um dia antes de sua morte, levantando ainda mais suspeitas. Ao mesmo tempo, o filme faz questão de não tomar partido ou estabelecer juízo de valor, fortalecendo os diferentes pontos de vista sobre esse relacionamento que teve um final trágico.
Em determinado momento, descobrimos que Sandra é conhecida por misturar realidade e ficção em seu trabalho como autora – o que supostamente seria uma prova de assassinato com algumas descrições em seu último livro. Por isso, é construída uma protagonista fascinante e cheia de camadas, ao mesmo tempo que serve como base para a própria ambiguidade da trama. No filme, as “evidências” são subjetivas e interpretações por diferentes pontos de vista, que não são necessariamente a verdade.
O público presencia o tempo todo as violências físicas e psicológicas sofridas por Sandra, desde a relação com seu marido até os advogados de acusação com retóricas machistas e misóginas, relacionadas ao fato dela ser uma mulher independente. É basicamente uma tentativa de destruição de sua reputação, expondo sua vida pessoal. Mesmo assim, em nenhum momento a protagonista é vitimizada pelo roteiro, pelo contrário, está sempre em busca de assumir o controle da narrativa ao seu favor.
Justine Triet (também responsável por Sibyl), que se tornou a terceira mulher a conquistar a Palma de Ouro em Cannes, sabe trabalhar perfeitamente a ambiguidade moral de sua personagem feminina, com sucesso principalmente pela atuação impressionante de Sandra Hüller – atriz que tem se destacado bastante nos últimos anos e está também no aclamado Zona de Interesse, vencedor do Grande Prêmio no Festival de Cannes 2023. Ela passa por todas as nuances e complexidades de Sandra em uma das melhores atuações do ano, que merece (e deve receber) bastante reconhecimento duante a temporada de premiações.
É natural que, com nossas próprias percepções de mundo e sobre a história contada, tenhamos um veredito para o relacionamento entre Sandra e Samuel, assim como a causa da morte do marido. Mas existe realmente um culpado? O filme brinca com essas impressões justamente com uma nova geração acostumada a ter uma opinião formada sobre todos os assuntos nas redes sociais.
Anatomia de uma Queda apresenta mais dúvidas do que respostas, o que neste caso específico é um ponto positivo e o principal objetivo da filme comandado por Justine Triet. Carregada pela atuação de Sandra Hüller, a produção mergulha o público em um julgamento desconfortável com percepções e interpretações diferentes e conflitantes, questionando se existe realmente uma verdade.
*O AdoroCinema assistiu ao filme durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.