Com reflexão sobre destino e escolhas, filme coreano é muito mais do que um triângulo amoroso
por Katiúscia Vianna“E se?” Duas palavras que, separadas, não têm grande importância, mas juntas podem afetar o seu destino (e a sua mente). Eu tirei essa analogia da adorável comédia romântica Cartas para Julieta, uma história fofa com Amanda Seyfried ao som de Taylor Swift. Mas esse tema também aborda diversas histórias ao redor do mundo - e encontra um carinho especial em Vidas Passadas, conceituado projeto que foi elogiado nos festivais de Berlim e Sundance, fazendo sua estreia no Brasil pelo Festival do Rio.
Past Lives (no original) é a estreia da dramaturga Celine Song no cinema, acompanhando o relacionamento de dois amigos de infância: Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo). Muito unidos, o potencial de romance entre eles é destruído quando a família da jovem decide sair da Coréia do Sul. Duas décadas depois, eles se reencontram durante uma semana em Nova York, onde são obrigados a confrontar sua eterna conexão com a realidade e os sonhos que os cercam.
Greta Lee é conhecida pelo público por sua participação em The Morning Show, uma das maiores séries da Apple TV+, onde atua com nomes como Jennifer Aniston e Reese Witherspoon; enquanto Teo Yoo apareceu no popular dorama Love to Hate You, além de participar de outro queridinho coreano da crítica, Decisão de Partir. Por fim, o elenco principal é fechado por John Magaro - que tem em sua filmografia os títulos Carol e A Grande Aposta, além de séries como Orange Is the New Black e The Umbrella Academy.
Boa parte da trama de Vidas Passadas surge a partir de um conceito oriental apresentado no longa: In-Yun. O que significaria, em livre tradução, como destino. De acordo com ele, quando duas pessoas se cruzam, existem milhares de camadas de In-Yun que os unem de outras (você adivinhou!) vidas passadas. É curioso pensar que temos conexões especiais com cada pessoa que surge em nossas jornadas.
Mas aí surge o peso do “E se?”. Se mudamos o nosso destino, existe como fugir do que, teoricamente, está traçado em nossos futuros? Pegue o caso de Nora: sua vida muda completamente após se mudar da Coreia do Sul. Ela se torna uma imigrante duas vezes, começa uma carreira, constrói uma nova vida. E, para isso, ela (acredita que) precisa deixar para trás a menina que foi na juventude. Precisou se adaptar à uma nova língua, à uma nova realidade.
O que Past Lives tenta provar é que existe um equilíbrio entre esses dois destinos, digamos assim. Mais do que reencontrar um amor perdido, o interessante é ver Nora reencontrando uma parte de si mesma que pensou ter enterrado faz muito tempo. Na realidade, somos compostos por essas diversas versões de nós mesmos - sejam boas ou ruins, maduras ou não, inocentes ou complexas. Cada minuto nos constrói até o presente que vivemos. Claro que sempre podemos mudar, já diz o tal livre arbítrio, mas nunca podemos esquecer completamente quem somos para isso.
Como vocês podem perceber pela minha pequena aula de filosofia acima, Vidas Passadas foge dos exageros do conceito “amores antigos que se reencontram após anos”. Não é uma visão romantizada, mas ainda traz uma ternura agridoce sobre a história de Nora e Hae Sung. Existem motivos importantes para suas separações, mas sempre houve aquela pulga atrás da orelha sobre o que teria acontecido se algum passo tivesse sido diferente.
Se Nora tenta seguir em frente, Hae Sung sempre carregou a saudade de sua então melhor amiga - o que também inverte um pouco o clichê estúpido de mulher apaixonada que não supera o passado e tal. Sem dar muitos spoilers, o filme vai te preparando com calma, mostrando realmente a conexão que existe entre eles, mas sem deixar de mostrar os obstáculos que surgem em seus caminhos. Mas, ao se reencontrarem finalmente, será que tudo pode mudar em apenas uma semana? Ou melhor, será que tudo deveria mudar em apenas uma semana?
Mesmo fugindo do estereótipo, Past Lives traz um triângulo amoroso básico, com John Mugaro vivendo o marido de Nora, Arthur (essa informação está no trailer, não me xinguem). Ele mesmo brinca com a situação, observando que, ao contar essa história de forma dramática, ele seria o “vilão branco que está no caminho do destino” - mas ele está bem longe de ser assim. Ele é paciente, educado e tem bom coração, apesar de estar morrendo de medo de perder sua amada. Enxerga esse lado que Nora tenta esquecer de seu passado coreano e quer se conectar a ele, mas não sabe se conseguirá algum dia. Isso é uma questão pouco abordada no cinema, principalmente entre casais interraciais ou de diferentes culturas. A ideia que o amor vence tudo é bela, mas até onde ele pode ser o suficiente, se você mesmo não se aceita?
O mais curioso é que Vidas Passadas é livremente inspirado num encontro da diretora e roteirista Celine Song com um amigo de infância, o que explica o toque realista e sublime que a história carrega. De uma maneira poética, aquilo realmente aconteceu e só estamos tendo o prazer de ver isso ser recontado de uma maneira muito bela. Claro que não se trata de um filme biográfico, mas a experiência está presente em qualquer pessoa que precisou deixar algo importante para trás e foi reconstruir sua vida.
Normalmente, eu separo um trecho na crítica apenas para falar do elenco, mas aqui eles são tão entrosados, que é difícil fazer outra coisa que não elogiá-los. Greta Lee carrega o debate interno mais profundo de sua personagem, representando bem o dilema de qualquer imigrante. Além disso, ela forma boas duplas com seus respectivos interesses amorosos, apresentando lados diferentes de si para cada um deles. Teo Yoo prova o motivo de ser uma das maiores apostas da Coreia do momento, se expressando muito com poucos olhares e gestos. E John Mugaro quebra os clichês, apresentando uma faceta muito mais doce do que conhecíamos até então.
Past Lives não é um filme de grandes reviravoltas ou explosões, mas isso não significa que deixa de causar grandes emoções. Porém, seu ritmo é como um rio calmo: cada coisa acontecerá quando tiver que ser, e a expectativa torna tudo ainda mais especial. Ao mesmo tempo, nunca foge de uma visão mais centrada na realidade, onde a beleza está nos detalhes e nas almas de seus personagens. É uma visão introspectiva que vale a pena ser vista. Afinal, você não quer ficar se questionando: “E se?”
* O AdoroCinema conferiu esse filme no Festival do Rio 2023.