Segredos de um Escândalo (May December) 2023
"Segredos de um Escândalo" (ou "Maio Dezembro", sinceramente não entendi essa versão brasileira do título) é dirigido por Todd Haynes ("Longe do Paraíso", de 2002) a partir de um roteiro de Samy Burch, baseado em uma história de Burch e Alex Mechanik. A Netflix adquiriu os direitos de distribuição na América do Norte. O longa é estrelado por Natalie Portman como uma atriz que viaja para conhecer e estudar a vida da polêmica Gracie (Julianne Moore) que ela interpretará em um filme.
De acordo com as minhas pesquisas:
O filme é inspirado no caso real sobre a vida de Mary Kay Letourneau, uma mulher de 36 anos que aliciou e estuprou um pré-adolescente de apenas 13 anos em 1996. Na época, ela era professora de Vili Fualaau, e o caso resultou na prisão de Mary, que ficou seis anos na cadeia. Quando Mary conheceu Vili, ele era apenas uma criança e ela já era casada com quatro filhos, além de ser uma professora conceituada. Mary dizia que tudo começou porque ele a perseguia, e ela teria apenas consentido com o caso. No início, a relação foi mantida em segredo, até que tudo veio à tona. Em meio a todo o escândalo, nenhum dos envolvidos tratou a relação como um crime, nem a abusadora e nem a vítima. Em entrevistas para a televisão, o casal protagonizava declarações bizarras, principalmente Mary, quando eram questionados por repórteres sobre a diferença de idade. Mary nunca assumiu que cometeu um crime, tanto que permaneceu em uma relação com Vili e eles chegaram a se casar. O casamento durou 12 anos, com o divórcio acontecendo em 2017, e juntos eles tiveram duas filhas. Mary morreu em 2020 aos 58 anos.
Sobre o filme:
"Segredos de um Escândalo" traz uma história chocante e muito interessante, e desperta ainda mais a nossa curiosidade quando descobrimos que tudo foi baseado em uma bizarra história real. Logo vamos entendendo toda a história e encaixando cada personagem nela. É interessante notar que o escândalo real acontece nos anos 90, mas no filme estamos praticamente duas décadas depois, ali por volta do ano de 2015. Partindo desse ponto, temos atualmente a Gracie Atherton-Yoo que hoje é casada com Joe Yoo (Charles Melton), com quem ela formou uma família e tiveram 3 filhos.
Pode parecer bizarro, mas Gracie foi condenada por estupro de vulnerável e ainda formou uma família com a vítima. Dito isto, Gracie hoje vive sua vida com esposo e filhos, e preferiu se afastar da mídia em um modo geral. Dessa forma Gracie opta por aceitar receber em sua casa a atriz Elizabeth Berry, que se prepara para encarar um dos papéis mais desafiadores de sua carreira. A partir daí, Elizabeth passa a analisar cada passo da vida da Gracie, fazendo um verdadeiro estudo de personagem, de características, de sentimentos, mergulhando naquela relação entre Gracie e Joe, se inteirando cada vez mais daquele romance midiático. Logo toda essa convivência entre Elizabeth, Gracie e Joe começa a reviver segredos obscuros de uma passado traumático na vida do casal, expondo seus limites, ultrapassando seus limites, expondo verdades que até então estavam guardadas, ou de certa forma até ignoradas no âmbito familiar.
Um ponto muito curioso e até questionável, é exatamente a forma como o roteiro aborda (vagamente) toda história real, que é justamente a partir da chegada e da interação de Elizabeth com aquela família. Ou seja, não temos uma abordagem dos fatos ocorridos a partir de todo o escândalo, não temos um resumo sobre a história no passado, como tudo aconteceu. A produção do filme não chegou a consultar o Vili Fualaau sobre os fatos ocorridos, o que acabou sendo preenchido com uma ficção baseada em relatos. Eu acredito que esta foi uma escolha de roteiro, usando uma certa liberdade criativa dos fatos e optando por deixar de fora todo esse contexto polêmico, até por se tratar de um crime sexual envolvendo um menor de idade. Eu entendo toda essa escolha de roteiro, até para o filme de Todd Haynes se manter fora de polêmicas, mas confesso que eu fiquei curioso em como seria uma abordagem a partir desse ponto na história.
"Segredos de um Escândalo" opta por ir na contramão de todas as polêmicas do início do relacionamento, e focar especialmente na obsessão da figura da Elizabeth dentro daquele contexto que ela se encontra no momento. De fato é um roteiro que abrange o estupro estatutário, o envolvimento das pessoas no caso, em como elas vivem atualmente, mas especificamente é um filme sobre a obsessão humana, e sobre obsessão ninguém é melhor do que a talentosíssima Natalie Portman. Natalie venceu o Oscar justamente pela sua obsessão, pelo seu perfeccionismo, pela sua busca incessante pela perfeição na pele da bailarina Nina, em "Cisne Negro" (2010). Dessa forma temos uma Natalie na pele da Elizabeth Berry que tem uma obsessão pela aquela mulher (ou pela sua história), que busca trabalhar e absorver cada vez mais as características da personagem que ela vai interpretar naquele filme independente, fazendo um verdadeiro laboratório, ficando perto daquela família, entrevistando cada membro daquela família, além de sempre se manter perto da Gracie, sempre observando como é a sua relação com o Joe. Temos aqui uma boa metaficção.
"Segredos de um Escândalo" é aquele típico True Crime, que traz uma análise sobre como a mídia pode distorcer os fatos ocorridos, ou até a percepção das pessoas sobre si mesma, ou sobre as pessoas envolvidas no caso. O longa de Todd Haynes bebe bastante da fonte dos True Crime dos anos 90 (até por ser um desejo do próprio diretor). É interessante perceber que a Gracie e o Joe viviam uma vida longe da mídia, longe das polêmicas que ela causou, como se estivessem presos em seus mundos, dentro da sua bolha, sem a percepção sobre o que aquela relação poderia representar em uma visão geral de alguém de fora. E nesse ponto o roteiro cresce e ganha mais fôlego, ao desenvolver a chegada da Elizabeth e em como a sua presença começa a abalar a estrutura daquela relação, em como ela faz com que o casal comece a pensar fora da bolha do relacionamento. Já pelo lado da Elizabeth, ela passa a se envolver cada vez mais, mergulhar cada vez mais naquele ambiente hostil, onde ela própria passa a carregar o peso e a pressão que a sua jornada exige, o que acaba a levando por um outro caminho diferente.
Nesse ponto do filme temos um grande estudo de personagem, pois a Elizabeth passa a incorporar a Gracie de uma forma assustadora, misturando suas emoções reais com uma interpretação intensa e repleta de camadas, onde ela busca incessantemente a perfeição, e passa a se vestir igual a Gracie, a se portar igual a Gracie, a falar igual a Gracie, e na medida que elas vão se conhecendo melhor vamos se aprofundando cada vez mais em duas mentes distintas que acabam se conectando estranhamente. Elizabeth passa a ficar tão obcecada em viver a vida da Gracie e ser parecida cada vez mais com essa personalidade, que ela acaba mergulhando profundamente em viver e sentir tudo em sua volta com a cabeça da própria Gracie, isso incluindo em ser um clone da Gracie, em tomar pra si a vida da Gracie, o relacionamento familiar, o envolvimento com os filhos, e até chegar em seu marido. Nesse ponto é interessante acompanhar essa aproximação entre a Elizabeth e o Joe, pois ambos tem idades parecidas mas com mentes completamente distintas, e a partir dessa aproximação que a Elizabeth dá a sua maior cartada em incorporar a Gracie, que é seduzindo seu marido e até transando com ele.
E aqui eu preciso destacar o elenco de "Segredos de um Escândalo", especificamente o trio composto por Natalie Portman, Julianne Moore e Charles Melton. Pois temos aqui aquele típico caso do filme que se segura unicamente e exclusivamente pela atuação de seu elenco.
Como já mencionei anteriormente, a Natalie Portman ("Thor: Amor e Trovão") foi a escolha perfeita para viver a Elizabeth Berry, justamente pela sua obsessão e perfeccionismo na personagem. Natalie faz uma personagem carregada, cheia de camadas, de nuances, que aos pouco vai mergulhando naquela vida paralela e desvendando segredos, traumas do passado de Gracie, e vai cada vez mais entrando em uma zona perigosa e expondo a sua dualidade. No fim, a Elizabeth acaba se perdendo na personagem da Gracie, onde ela acaba se tornando aquela sedutora que ela tanto queria interpretar. Temos algumas cenas onde a Natalie dá um show de atuação: Como aquela cena onde ela discursa na escola sobre sexo com a turma, porém de uma forma um tanto quanto exagerada. Aquela outra cena onde ela acaba desabafando sobre toda a sua trajetória, seus arrependimentos, diante de uma quebra da quarta parede. Belíssima atuação da Natalie Portman!
Já a Julianne Moore ("A Mulher na Janela") faz aquela mulher que vive em um conto de fadas, em uma fantasia criada pela sua cabeça, em mundo onde ela criou e acha que todos ao seu redor gostam dela, se importam com ela, praticamente vivendo uma vida ilusória. Por outro lado a Gracie faz a linha da coitadinha, da ingênua, de tentar convencer as pessoas ao seu redor que ela é aquela pessoa pura, inocente, confiável, quando na verdade ela é detestável, desprezável, traiçoeira, manipulável, maquiavélica, verdadeiramente uma predadora preparando seu terreno para o ataque. Julianne Moore dá um verdadeiro show de atuação, e nos conquista com uma interpretação forte, arrojada, compenetrada, onde ela foca nos trejeitos, em sua expressões, em suas falas, em seu modo de agir, de se portar, com toda a certeza ela estudou profundamente a personagem.
Charles Melton (da série "Riverdale") faz um contraponto muito interessante entre a Natalie e a Julianne. Melton pra mim faz a atuação mais difícil e complicada de todo o filme, pois inicialmente ele nos passa a sensação de estar perdido dentro daquele mundo, daquela relação com a Gracie, onde ela se vê o tempo todo como uma dependente dele, com ele assumindo todo o papel daquela relação, como pai e marido. A partir daí (e principalmente da chegada da Elizabeth) começamos a perceber que o Joe começa a expor suas insatisfações, suas inseguranças, suas frustrações, e começa a perceber tudo em sua volta, como uma forma de despertar daquela relação, daquela vida. E nesse ponto é muito interessante acompanharmos o despertar de Joe, quando ele se dá conta que sempre foi a vítima naquela relação, que ele sofreu abuso daquela predadora sexual, que ele era imaturo e foi manipulado pela Gracie, que ele perdeu grande parte da sua vida, principalmente da sua juventude, tendo que assumir papeis que não lhe cabiam naquele momento. E toda essa desconstrução e descaracterização vai ocorrendo com o Joe quando ele vai percebendo que teve sua vida privada dos seus desejos próprios, que teve sua adolescência podada por aquela mulher que o fez passar por uma grande pressão psicológica, que ele foi uma vítima dela e viveu em uma prisão dentro de uma vida ilusória.
Posso afirmar que Charles Melton tem o melhor personagem e entrega a melhor atuação dentro do filme.
Agora eu preciso deixar registrado a minha indignação com o Oscar em esnobar essas três impecáveis atuações. Apesar que vindo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, podemos esperar qualquer tipo de absurdo e de injustiça.
Outro ponto muito interessante no longa e que precisa ser mencionado, é a forma como os acontecimentos tomam proporções diferentes de acordo com a respectiva época em que ocorreu. Digo isso pelo fato desse caso, que obviamente se tivesse acontecido hoje em dia tomaria uma proporção absurda e seria recebido totalmente diferente daquela época. Pois nos anos 90 a mídia em si encarava o caso como um caso de amor infeliz, que não deu certo, que fracassou, onde a própria Mary não era vista como uma abusadora, sendo encarada apenas como uma aventura amorosa. E mais absurdo ainda é a própria família do Vili afirmar que ele era muito maduro para sua idade, que eles eram muito apaixonados, encarando o caso como normal. A Mary com 36 anos e o Vili com 13, e ainda tinha pessoas que encarava este relacionamento como normal - é realmente uma coisa inexplicavelmente absurda!
Outro ponto que me faz pensar: e se fosse ao contrário, como reagiria as pessoas? Se ele tivesse 36 anos e ela 13. Fica ai o questionamento.
Falando das partes técnicas:
É preciso destacar a excelente direção de Todd Haynes, onde ele exerce um trabalho de câmera impecável, traçando um paralelo entre os acontecimentos em cena com um close fechado nas expressões dos atores/atrizes. É muito interessante analisar a forma como o diretor usar os takes e os ângulos mais fechados em vários momentos de diálogos, para nos dar a dimensão daquela cena, daquele acontecimento, daquela descoberta; como na cena onde a Elizabeth conversa com a Gracie no banheiro, e a cena com o Joel fumando droga com seu filho no telhado. São duas cenas que traz esse trabalho de câmera que eu destaquei, com ênfase nos closes mais fechados justamente para nos revelar aquela descoberta, tanto pelo lado da Elizabeth, quanto pelo lado do Joe.
A trilha sonora do filme é potente, é eficaz nos momentos mais oportunos da trama, onde ela dita o ritmo da cena, do acontecimento que está sendo narrado, nos fazendo mergulhar cada vez mais naquela história. Uma boa trilha sonora de Marcelo Zarvos e Michel Legrand. A fotografia de Christopher Blauvelt também tem o seu merecido destaque. Assim como todo o trabalho da direção de arte, da edição, da montagem e da cenografia. Tecnicamente o filme é muito bem feito!
"Segredos de um Escândalo" foi lançado em cinemas selecionados dos EUA, antes de ser transmitido na Netflix nos EUA e Canadá. O filme foi selecionado para concorrer à Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes. Também foi exibido como "Filme da Noite de Abertura" no Festival de Cinema de Nova York de 2023. O longa ficou em décimo lugar na lista dos 50 melhores filmes de 2023 da Sight and Sound, entre 363 filmes indicados por 106 participantes britânicos e internacionais. Também foi escolhido pelo American Film Institute como um dos dez melhores filmes de 2023. No Rotten Tomatoes, 90% das 300 resenhas dos críticos são positivas, com uma classificação média de 7,8/10. Já no Metacritic, que usa uma média ponderada, atribuiu ao filme uma pontuação de 86 em 100, com base em 53 críticos.
O longa-metragem de Todd Haynes recebeu quatro indicações no Globo de Ouro e apenas uma indicação de Melhor Roteiro Original no Oscar. Alguns críticos opinaram que houve uma omissão de indicações de atuação no Oscar, apesar de ter sido indicado em outras associações de premiação importantes. EJ Dickson da Rolling Stone citou o padrão da Academia de excluir atores de ascendência asiática e sua falta de reconhecimento a artistas com menos de 40 anos como as razões pelas quais Charles Melton não foi indicado. Foi como eu já mencionei anteriormente, sobre a grande esnobada por parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Por fim, "Segredos de um Escândalo" se destaca por analisar um caso real bastante bizarro, cujo roteiro se destaca por explorar as consequências e as polêmicas desse escândalo na vida daquele improvável casal. É um filme que consegue fazer uma linha entre o drama e o romance misturando sentimentos e emoções de todas as pessoas envolvidas na trama. Mas por outro lado é preciso mencionar que algumas partes da história soa confusa, bagunçada, displicente, onde o elenco e suas atuações são basicamente o que segura todo o filme.
[10/03/2024]