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    Crimes do Futuro
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Crimes do Futuro

    “Cirurgia é o novo sexo”

    por Aline Pereira

    Quando os primeiros segundos de Crimes of the Future revelam uma criança comendo uma lixeira (o plástico mesmo), a gente simplesmente sabe: David Cronenberg está de volta. Há quase dez anos sem dirigir um longa-metragem, o cineasta faz um retorno trazendo muitos (embora não todos) elementos que o tornaram um dos mestres do horror e da ficção grotesca. Com Kristen Stewart e Viggo Mortensen, Crimes of the Future apresenta um futuro tenebroso em que “cirurgia é o novo sexo”.

    Neste mundo distópico, os seres humanos precisaram se adaptar a um novo ambiente, em que tudo é sintético. Com isso, o corpo passa por mutações, que transformam os órgãos e até criam novas “peças” internas - todas elas, é claro, expostas abertamente ao público. É neste contexto que acompanhamos Saul (Viggo Mortensen, em mais uma parceria com Cronenberg), um artista famoso capaz de criar novos órgãos dentro de seu corpo e que utiliza isso como performance em suas apresentações, altamente populares.

    Enquanto as performances são auxiliadas por Caprice (Léa Seydoux), parceira de Saul, temos a perseguição de Timlin (Kristen Stewart, em um de seus melhores momentos), uma agente oficial, ao que parece, obcecada pelas habilidades do artista - ao mesmo tempo em que quer revelar essas transformações de Saul, o fascínio de Timlin ainda vai muito além.

    “O corpo é a realidade” e tudo gira em torno dele

    Crimes of the Future cria um clima claustrofóbico para o espectador: todos os ambientes sugerem o caos e o lixo, são escuros e desorganizados - talvez uma representação externa do que existe por dentro do novo corpo humano. A trama discute, partindo desse viés sombrio, a obsessão pelo corpo em conflito com a liberdade do controle individual. No universo do longa, as intervenções cirúrgicas são coisa comum.

    Modificar profundamente o corpo para entrar na moda ou apenas pelo choque estético é uma banalidade - e não é difícil traçar um paralelo com o mundo real. O longa faz uma reflexão aqui sobre o que pode nos esperar no futuro em termos de intervenções em nossos próprios corpos: o desejo pela transformação fica cada vez mais latente, assim como a facilidade em torná-los realidade. O que se tem em Crimes of the Future é uma sociedade “desfigurada” em que, por exemplo, uma pessoa implanta orelhas (que não funcionam) em todo o seu corpo, enquanto outra rasga o próprio rosto - tudo em nome da estética.

    A sentença “o corpo é a realidade”, que aparece no filme, conversa diretamente com o conjunto da obra de Cronenberg, cuja abordagem do horror corporal é a grande marca. Mas vale ressaltar para quem já acompanha a carreira do cineasta, que Crimes of the Future pega mais leve do que se poderia esperar no sentido da surpresa e do choque das imagens. Há, é claro, cenas perturbadoras no filme, mas a sensação é de que Cronenberg caminhou para um lado existencial que é muito mais exposto verbalmente, do que graficamente.

    Controle também é uma questão em pauta. “Escrevi esse roteiro há 20 anos e já dava para sentir que isso estava vindo, esse domínio e controle opressivo sobre o corpo das pessoas”, disse Cronenberg em entrevista coletiva no Festival de Cannes 2022, que marcou a estreia de seu novo filme. Nesse sentido, Crimes também nos faz pensar sobre a existência física como moeda de troca, propriedade, e sobre as consequências que existem quando a decisão do que fazer com o próprio corpo está nas mãos de outras pessoas. 

    Ainda há aqueles que resistem à nova “ordem”, mas a realidade é avassaladora e parece impossível de ser contornada - com consequências graves para quem tentar.

    A (não) natureza do futuro

    As transformações do corpo acompanham a modificação do meio ambiente, em que tudo passa a ser sintético, em uma especulação catastrófica do que vai sobrar após a destruição contínua da natureza, que já é nossa realidade. Uma das mutações, por exemplo, é o desenvolvimento de um sistema digestivo preparado para se alimentar de plástico. Cronenberg propõe aqui um futuro em que tudo é artificial e fica a perspectiva terrível de como será a próxima etapa da evolução humana para encarar essa tragédia anunciada.

    Nessa evolução, muda-se também a ideia de dor, que não é mais como conhecemos agora. Aqui vale deixar os detalhes de fora para evitar spoilers, mas também é um ponto que remete à filmografia do diretor: o prazer e o sofrimento têm uma conexão distorcida e sádica. Quando a personagem de Kristen Stewart crava a frase “cirurgia é o novo sexo”, fica claro que a noção de intimidade e paixão tiveram seu significado completamente transformado. A moeda de troca agora é outra.

    Uma reflexão sobre a própria arte?

    O protagonista de Viggo Mortensen pode surgir ainda como uma ilustração do que significa o trabalho do artista. Saul, seu personagem, literalmente expõe suas entranhas e abre seu corpo em nome do espetáculo. Seu público é atraído pela capacidade do artista de chegar ao extremo, de colocar sobre a mesa tudo o que têm a oferecer, física e emocionalmente.

    Podemos pensar nessa dinâmica como uma própria reflexão da carreira que trouxe o diretor até aqui. O extremo esteve sempre presente, assim como os corpos revelados em toda a sua crueza - característica que também torna a mente do cineasta um livro aberto e que coloca seus atores também em uma posição de entrega completa. “Todos os meus filmes são incrivelmente íntimos (...) é por isso que você precisa de atores que não tenham medo. É isso o que você quer como diretor. Você pede muito deles, muita intimidade”, afirmou Cronenberg em Cannes.

    Crimes of the Future parece um começo 

    Embora o longa entregue um bom leque de elementos para a discussão filosófica a que se propõe, a sensação é de que faltam elementos visuais que poderiam dar mais força aos argumentos. Crimes of the Future não se aprofunda muito nem em seus personagens, nem em seu universo - o que talvez seja o problema mais evidente. O espectador é responsável por preencher lacunas demais com a própria imaginação para tentar entender os detalhes de como aquela realidade funciona, o que pode atrapalhar a imersão - se é difícil entender exatamente o que está acontecendo, também fica difícil ligar os pontos.

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