A escritora inglesa Virginia Woolf era uma mulher de personalidade conturbada, além de ser constantemente atormentada por crises psicóticas. Talvez por ter que lutar para viver dignamente cada hora de sua vida, este foi o tema mais recorrente em sua obra. Os leitores acompanham cada momento vivido por aqueles que habitam o mundo criado pela escritora. O seu maior legado foi ter deixado a lição de que o mais próximo da ideia de felicidade é viver intensamente cada hora da nossa vida. Tal receita é seguida ao pé da letra pelo diretor Stephen Daldry no filme “As Horas” – indicado a nove Oscars em 2003, dos quais venceu um.
O roteirista David Hare sabia que não teria um trabalho agradável pela frente desde que aceitou fazer a adaptação do difícil e premiado romance de mesmo nome escrito por Michael Cunningham. Muitos achavam que isto seria impossível – até mesmo os envolvidos com a pré-produção do filme. Porém Hare, contrariando todas as expectativas, fez um roteiro que preservava a excelência do romance original, além de ter acrescentado novos rumos que enriquecem a história. Assim como no livro, o filme acompanha um dia na vida de três mulheres em épocas diferentes, entretanto todas estão unidas por um laço surpreendente que só será revelado no final.
A viagem começa no subúrbio londrino de Essex, quando acompanhamos o suicídio de Virginia Woolf (Nicole Kidman, na melhor atuação de sua carreira, premiada com o Oscar 2002 de Melhor Atriz). Em um pulo, a história volta ao momento em que a escritora está começando a escrever aquele que seria considerado a sua obra-prima, o romance “A Senhora Dalloway”. Neste meio tempo, ela recebe a visita de sua irmã e sobrinhos e tenta conseguir uma maneira de se relacionar com o mundo exterior – que envolve seu marido, as criadas, os estranhos – sempre numa tentativa de mostrar a todos que ela está se sentindo bem.
“A Senhora Dalloway” tem como tema principal, assim como o livro escrito por Michael Cunningham, o acompanhamento de um dia na vida de uma mulher: Clarissa Dalloway, dama da aristocracia inglesa, que esconde seus problemas numa fachada de mulher deslumbrante, cuja principal atividade é promover festas. Algo parecido com o que vivenciam as outras duas mulheres do filme.
A primeira delas é a dona de casa Laura Brown (Julianne Moore, fantástica como sempre), que vive na Los Angeles dos anos 50. Laura tem a vida que todas desejam: possui um casamento feliz, uma casa bem arrumada, um filho dedicado, além de estar grávida da sua segunda criança. Mas algo está faltando e ela não consegue se sentir bem com o que tem. Ela tenta ser a esposa, mãe e amiga perfeita enquanto prepara a festa de aniversário de seu marido, o sobrevivente de guerra Dan (John C. Reilly).
A segunda delas é a editora Clarissa Vaughan (Meryl Streep), que vive na Nova York dos dias atuais. Clarissa é aquela típica mulher rocha, que tudo agüenta e que é o eixo em que as suas pessoas amadas se apoiam. E assim ela vai tocando a sua vida e lutando contra o que sente, durante os preparativos da festa em homenagem ao seu ex-amante e poeta aidético terminal Richard (Ed Harris) – que acabou de receber um prêmio celebrando a sua obra literária.
As três mulheres estão perdidas, tristes e sem perspectivas de mudanças. Cada sentimento desse é passado para a platéia de uma forma quase sensorial. A música de Philip Glass também ajuda muito, afinal traduz todo clima de melancolia que impera no filme. No que diz respeito às questões técnicas – fotografia, direção de arte, figurino, maquiagem – “As Horas” é simplesmente perfeito. Isso sem falar nas atuações devastantes do trio de atrizes principais e do elenco de apoio.
Stephen Daldry e equipe podem orgulhosamente dizer que fizeram uma obra-prima. “As Horas” é um daqueles filmes em que, a cada vez que você o assiste, você percebe algo novo, uma informação diferente, algo que passou despercebido. Em sua essência, “As Horas” é um filme que fala sobre o livre arbítrio da vida, especialmente sobre como cada decisão que tomamos afeta o destino que nós – e as pessoas que estão ao nosso redor – teremos. É um longa pungente, sincero por demais e, em alguns momentos, muito difícil de se assistir, porém assim é a vida, em alguns momentos. E é justamente essa a matéria-prima que move todos os desígnios pelos quais passam, não só a literatura de Virginia Woolf e Michael Cunningham, como também a adaptação de Stephen Daldry e David Hare.