Concebido em 2002, muito antes de Marvel e DC terem seus gigantescos e bem sucedidos universos cinematográficos, Homem-Aranha chegou aos cinemas para dar vida a um dos personagens mais queridos das histórias em quadrinho. É interessante revisitar o início da trilogia de Sam Raimi, quase 20 anos depois, e observar algumas das tendências que a produção lançava para a indústria, assim como aspectos datados que evidenciam a evolução do subgênero. Bullying caricato, comentários assumidamente machistas e falta de representatividade são algumas das características que marcam o primeiro longa de Tobey Maguire como o aracnídeo.
Ainda assim, os itens mencionados acima estão longe de ser as maiores questões da narrativa. Quem sofre a maior perda são os personagens. Do vilão ao herói, do protagonista aos mais secundário. O roteiro adota como uma constante o fato de que nenhum dos personagens parece sofrer com a dualidade das difíceis escolhas apresentadas diante deles. Ao ficar frente a frente ao homem que matou seu amado tio Ben (Cliff Robertson), Peter é tomado pela raiva e desejo de matar o assassino. Ao mesmo tempo, ele tem em mente que vingar a morte do ente querido o transformaria em algo que vai contra tudo que os tios tentaram ensiná-lo na vida. Assim, chega a ser quase cômico ver que o roteiro propõe a solução mais conveniente possível para o dilema: o assassino morre após tropeçar e cair do alto de uma janela.
Os diálogos excessivamente explicativos também deixam pouco espaço para interpretação. Peter decide participar de um torneio de luta livre, que anuncia um prêmio de 3 mil dólares para o vencedor. Ao derrotar seu adversário, no entanto, ele é enganado pelo promotor do evento, que decide quebrar o acordo e pagar apenas 100 dólares ao jovem. Ele vai embora frustrado, mas, no caminho até o elevador, presencia o mesmo promotor sendo assaltado. Ao invés de impedir que o bandido leve todo o dinheiro, o garoto decide deixá-lo fugir, demonstrando uma intenção clara de vingança por não ter recebido sua parte do combinado. Aqui, o roteiro sente a necessidade de esclarecer o que já era óbvio: “você podia deter o cara, e ele fugiu com meu dinheiro”, diz o promotor, ao que Peter responde: “e quem disse que isso é problema meu?”, repetindo a pergunta que o homem fizera minutos antes, quando se recusou a pagar a devida quantia a Peter.
A mesma fórmula é empregada na resolução final. Ao descobrir que o Duende Verde é, na verdade, Norman Osborn (Willem Dafoe), Peter é mais uma vez confrontado com uma decisão: perdoar o homem que o ajudou e o tratou como um filho, ou matá-lo por ter ameaçado a vida de milhares de inocentes, incluindo Mary Jane (Kirsten Stewart) e tia May (Rosemary Harris)? Antes mesmo que o personagem tenda para algum lado, a trama resolve o dilema com uma morte acidental do Duende Verde, em que ele acaba sendo vítima da própria arma, e tudo que Peter faz é sair do caminho para permitir que isso aconteça. Como se o Homem-Aranha fosse incapaz de desejar qualquer mal a alguém ou sentir raiva, por mais justificado e humano que isso seja.
Norman e Harry Osborn também não foram poupados pela falta de coerência do roteiro. Ao mesmo tempo em que Harry parece ver o pai como um homem insuportável, e se rebela na tentativa de afrontá-lo, ele também solta frases isoladas como “terei sorte se um dia for metade do homem que ele é”. Se tratando de qualquer ser humano, principalmente um adolescente, é perfeitamente compreensível que haja uma linha tênue entre o desprezo e a admiração. O problema é que essa ambivalência nunca ganha forma ou relevância no desenvolvimento da relação, sendo que é, provavelmente, a característica mais importante para compreendermos o impacto dos acontecimentos ao final do filme.
Norman, por sua vez, aparenta ser um homem gentil e ambicioso em um primeiro momento, mas ganha pouco tempo de tela antes de sua transformação no Duende Verde. Por isso, vê-lo sendo controlado pelo próprio experimento, algo triste e ao mesmo tempo irônico, acaba não tendo o peso dramático pretendido. Não identificamos seus anseios e ambições, e isso nos impede de sentir algum tipo de empatia pelo aprisionamento psicológico vivido por ele na história. É no mínimo estranho, também, que um cientista brilhante, que parece recorrer à racionalidade como forma de decifrar o mundo, tenha o impulso tão infantil de testar seu soro estimulante a qualquer custo, sem supervisão alguma e sabendo dos riscos de violência e insanidade, para não perder um contrato com as forças armadas americanas.
E, por fim, Mary Jane, cujo propósito se resume a ser salva por Peter e Homem-Aranha incontáveis vezes — algo que, se feito nos dias de hoje, não só receberia críticas compreensíveis como seria constrangedor. É interessante ver como a cena super machista em que Harry pede para Mary Jane usar preto, por ser a cor favorita de seu pai, não soa alarmante para a garota. “Quero impressioná-lo”, diz o namorado, deixando claro que é a aparência de Mary Jane que o fará ganhar pontos com o pai. O relacionamento abusivo vivido pela jovem em sua casa é completamente ignorado, ao mesmo tempo que seu conflito mais profundo na trama (e que também não recebe atenção) é justamente não atender às expectativas dos homens em sua vida, um padrão que se repete com Flash, Harry, Peter, seu chefe na lanchonete e seu pai.
Apesar dos tropeços no roteiro de Homem-Aranha, Raimi é eficiente ao dirigir sequências ágeis e fluidas do herói. Tanto os duelos com o Duende Verde quanto as cenas em que salva a população de perigos corriqueiros são bem dosadas e divertidas, atiçando a curiosidade acerca do potencial narrativo e criativo do aracnídeo, e, consequentemente, do que virá nas continuações. Tobey Maguire, embora apresente muitas limitações em cenas dramáticas, entrega um Peter Parker afável e acessível, em um filme leve e que muito se difere de seus sucessores, mas é corajoso o bastante para deixar sua marca na História, em um momento em que ainda não existia uma abundância de referências ou fábricas de produções sobre a complexidade de ser um herói no mundo contemporâneo.