A iminência da tragédia é um banho de realidade
por Aline PereiraOs irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne já são figurinhas carimbadas no Festival de Cannes há mais de 20 anos: vencedores em diversas categorias, a edição de 2022 rendeu a eles mais um troféu. Quando o ótimo Triangle of Sadness recebeu a Palma de Ouro, foi um alívio ver Tori et Lokita também ser prestigiado com um prêmio honorário comemorativo dos 75 anos. O longa foi, sem dúvidas, uma das produções mais importantes da edição porque nos leva a uma realidade quase invisível, mas avassaladora.
A primeira cena nos mostra a jovem Lokita (Joely Mbundu) em uma entrevista na imigração belga em busca da legalização de sua permanência no país, contando que seu irmão mais novo, Tori (Pablo Schils), já está lá. Os argumentos dela não convencem os oficiais: Tori e Lokita não são irmãos biológicos, embora tenham uma profunda conexão emocional. Para sobreviver enquanto a protagonista corre atrás de seus documentos, os dois vivem uma jornada de exploração e ilegalidade que passa longe de ser uma aventura sensacionalista, mas sim a história de uma realidade aterradora.
O uso muito sutil e moderado de ferramentas narrativas em Tori et Lokita (e na obra dos irmãos Dardenne, de forma geral) é, sem dúvidas, um dos dos trunfos mais poderosos do filme. À medida em que os problemas se intensificam na vida dos irmãos, há uma sensação de perigo iminente que ativa em nós o modo de “filme de aventura”, mas que é interrompido constantemente pelo senso de realidade. Ao contrário de produções realmente do gênero de aventura, em que a tensão é sempre amenizada pela expectativa de que haverá algum tipo de salvação, aqui, a iminência da tragédia é desesperadora - o beco sem saída fica cada vez mais perto.
Tori e Lokita é o primeiro trabalho da carreira tanto de Joely Mbundu quanto de Pablo Schils, escolhas certeiras dos diretores Luc e Jean Pierre Dardenne. Embora a dupla tenha mostrado um talento excepcional, existe também neles um ar de inocência no sentido de estarem ainda descobrindo um novo mundo, assim como seus personagens. A química entre os dois parece tão natural que salta aos olhos e torna a imersão naquele universo ficcional ainda mais imediata.
Lokita, talvez, exija uma dose extra de dramaticidade de sua intérprete: a irmã mais velha precisa exercer um papel maternal para o caçula e isso requer um sacrifício inimaginável. Com transtorno de ansiedade e crises de pânico sem possibilidade de receber tratamento contínuo e adequado (um ponto muito importante e pouco abordado nesse tipo de história), a protagonista carrega um fardo pesado demais para uma adolescente que, além de tudo, vive sob todo tipo de risco e ameaça.
Esta carga está completamente representada na atuação de Joely Mbundu e nossa conexão com ela é rápida, o que só torna ainda mais cortante o desenrolar da história. O sentimento de revolta diante da injustiça fica ainda mais intenso quando testemunhamos as consequências pelo olhar de quem está passando por elas. A cada vez que Lokita faz um esforço para segurar a própria barra e também a do irmão, respiramos fundo junto com ela.
Tori, por outro lado, é representação de uma inocência que é testada o tempo todo: o personagem tem seu lado infantil e imaginativo forte, mas é como se o mundo tentasse arrancar isso dele o tempo todo. O garoto é exposto a situações que exigem dele não só uma agilidade de pensamento, mas uma malandragem e uma dose de manipulação sem as quais seria impossível conseguir continuar sobrevivendo, ao menos em sua visão de criança. A sensação é de que ele não tem a exata dimensão da gravidade dos problemas, mas os sente e reage a eles de forma tão intensa quanto. Tori só fica em paz quando a irmã também está.
Na mesma medida em que são fundamentais histórias que nos apresentam a realidades que, em geral, passam despercebidas, é importante também não tornar a tragédia apenas mais um show de entretenimento - armadilha em que muitas produções cinematográficas caem facilmente. Felizmente, não é o caso de Tori et Lokita e, sem dúvidas, uma das características que tornam o filme tão impactante. O longa não parece querer ser didático ou tornar as situações caricaturas do mundo.
A mensagem fica clara porque mantém os pés no chão e entende que não há necessidade de se criar um espetáculo: para compreender a profundidade da história basta se abrir para assisti-la acontecer. Aqui, a ficção do cinema faz mais o papel de “organizar” e dar um recorte à realidade, que nos ajude a olhar com mais atenção para situações que acontecem o tempo todo.
Ainda neste contexto, Tori et Lokita nos faz entender também que as consequências da marginalização de pessoas não está só nos acontecimentos turbulentos, mas em todos os momentos entre eles. O longa nos deixa o tempo todo em alerta e tudo sempre parece estar a um passo da catástrofe: Lokita está a um passo do esgotamento físico e mental, Tori está a um passo de ter sua infância interrompida, os dois estão a um passo de serem capturados. É exaustivo o sentimento de tensão e de medo pelos personagens durante aquela uma hora de meia de filme - o bastante para nos fazer imaginar como é passar a vida, de fato, desviando da catástrofe.
Vale notar que também há um lado muito doce da história: Lokita e Tori encontram paz muito profunda e verdadeira um no outro - o acolhimento que trocam parece ser a grande força motriz que leva a dupla para frente. Tudo o que fazem é pelo outro e, acima de tudo, o grande problema para os dois é a solidão que toma conta quando se separam e a perspectiva de não conseguirem ficar juntos.
Tori e Lokita impressiona pela grandiosidade que traz ao colocar uma lupa tão próxima a somente dois personagens sem, ainda assim, querer torná-los uma alegoria, um avatar.
Vemos duas pessoas que têm seus dias bons e ruins se virando como podem no dia a dia e, entre tudo isso, também uma simplicidade e leveza que tornam a trama ainda mais realista - sem a espetacularização da tragédia, como mencionado antes, a complexidade da vida é o que há de mais emocionante e impactante.