Uma personagem que sente um desejo incontrolável por liberdade: essa é a premissa central de Pobres Criaturas (Poor Things), que vai se expandindo encantadoramente ao longo do filme. Mas o que torna essa história tão incrível é a maneira como o faz, enquanto observamos uma premissa aparentemente simples se desabrochar magnífica. Desde a questão dos limites éticos de um experimento científico, até a maneira como a ingenuidade de alguém que quer mudar o mundo pode ser vista como algo bom ou ruim. A personagem sente uma sede impetuosa de descobrir o mundo e luta contra todas as formas de prisão e limitação que querem lhe impor. Todos nós sentimos esse forte desejo de explorar tantos lugares quanto possível, está no DNA humano. E aqui a vemos recebendo outra vez uma oportunidade de experimentar sua vida depois de um fim trágico, de renascer, de mudar, de recuperar algo, uma essência perdida. E durante sua jornada, ela descobre tudo de bom e novo e acaba encontrando a possibilidade de mudar o mundo que vê à sua volta, como um reflexo de seu próprio interior.
As pessoas são melhoráveis? É tolice querer que as coisas sejam diferentes, que a sociedade mude, que a injustiça acabe (sim, acabar), que a pobreza vá embora e nunca volte, que tenhamos paz ao invés de guerra? Porque não se pode mais sonhar com isso, é ingênuo, é bobo, é típico de pessoas que acabaram de renascer e estão no processo de descobrimento. Então, como se faz? Somos feras selvagens do berço à sepultura (uma ideia sugerida por uma personagem)? Tudo que é sombrio e cruel, deveríamos tolerar? Se conformar perante tudo, e onde é que está a intensidade, o desejo genuíno de ver luz ao invés de trevas? Seja com socialismo ou capitalismo (em sua versão transformada), ou com qualquer outro meio, a história de Pobres Criaturas nos permite contemplar essas possibilidades como algo natural.
Pobres Criaturas é incrível não só porque mostra uma personagem que por natureza anseia liberdade incondicional e o quanto isso nos é narrado como algo maravilhoso. A maneira como ela transcende os limites que a sociedade à sua volta tenta impor, por vezes sendo incompreendida e até tida como um monstro. Ela não tolera limites, ela não tolera ser diminuída ou controlada. Mas ela também quer que as coisas mudem. Chame de revolução ou não, mas a personagem não se conforma com as nuances de desgraça e de opressão, e sua natureza livre a leva a querer mudá-las. E isso é o que faz de Pobres Criaturas uma obra realmente bonita.
***
Pobres Criaturas merece todos os elogios que recebeu e continua recebendo. Eu mesmo fiz questão de elencar alguns, mas fuçando um pouco pelas demais críticas, julguei necessário acrescentar um complemento pertinente.
Parece óbvio para quem assiste que a protagonista se envolve em uma jornada de aventura e descobertas. E com isso ela enfrenta vários desafios. Mas a mensagem implícita parece não ter ficado muito clara. Sim, esse é um filme sobre feminismo, mas não é um filme ideológico. Aponta um fato simples que muitos preferem não aceitar: as mulheres podem ser autossuficientes (se elas quiserem) e a liberdade que elas reivindicam é genuína.
Estamos no século 21 e às vezes parece que ainda mantemos comportamentos dos tempos bíblicos quando as mulheres eram vistas como mercadoria. Parece que a cada passo para frente damos dois para trás. As mulheres não pertencem a ninguém, chega dessas regras medievais idiotas. Lugar de mulher não é na cozinha, dentro de casa, lavando roupa ou submetida a qualquer limite imposto culturalmente. Lugar de mulher é onde ela bem entender.
Não querido, as mulheres não precisam ou devem fazer isso ou aquilo. Elas fazem o que elas bem desejarem e a única coisa que as impede de exercer plenamente sua liberdade é esse machismo ultrapassado que está profundamente enraizado na cultura. Assim como a protagonista Bella Baxter, as mulheres não têm que obedecer, seguir, se enquadrar, se contentar com uma vida sem liberdade, aceitar todas as convenções que limitam seu comportamento e seu desejo. Por isso as ideias do filme são tão fortes e pertinentes, vieram na hora certa, ainda dá pra consertar o século 21 e se livrar de todas as formas de injustiça, opressão e atraso.
Viva a revolução feminista!