O início de "Dogville" é arrebatador. O impacto da cenografia do filme no público é enorme, chega a ser difícil acompanhar as legendas nos primeiros minutos pela vontade que se tem de parar o filme e compreender aquela construção cenográfica. Trata-se de algo completamente não-usual para o cinema, uma espécie de teatro filmado retratado pelo alto, para que possamos conferir as marcações das casas e objetos no chão do palco. O brilhantismo da direção de arte não fica apenas nas marcações das casas, mas também na iluminação - as "paredes" ficam escuras e claras, dependendo do momento do dia - e em alguns detalhes, como a neve que cai na cidade e nos sons, que retratam momentos como a abertura das portas das casas. "Dogville" já mereceria ser assistido apenas por sua caracterização cenográfica, simplesmente maravilhosa, mas o filme apresenta mais. Apresenta uma Nicole Kidman belíssima, talvez mais do que em qualquer outro filme que já tenha feito, que conquista o público com seu jeito meigo assim que aparece. Kidman tem uma grande atuação, contida e milimetricamente calculada para que sua personagem não caia para o melodramático em momento algum, mesmo quando Grace passa pelos piores momentos dentro do filme. A cena de sua tentativa de fuga em um caminhão é uma das melhores mostras de seu talento. Mas "Dogville" apresenta ainda mais. Apresenta uma história onde as mazelas da sociedade são expostas de maneira crua e dura, na qual pode-se perceber nitidamente o processo de transformação dos habitantes de Dogville a partir do momento em que percebem que eles detêm o poder de decidir a vida de Grace. Entre todos os personagens destaque para Tom (Paul Bettany), que maquia seu egoísmo e arrogância atrás de supostas boas intenções, altruísmo e generosidade. É neste momento que, assim como em seus filmes de maior sucesso, Lars Von Trier põe sua protagonista para sofrer, e muito, dentro da história. Falar sobre cenas marcantes do filme levaria parágrafos e mais parágrafos, mas há uma cena em especial que vale a pena ser ressaltada, por mesclar algumas das principais qualidades de "Dogville": o estupro de Grace por Chuck. Sem cenários, o público pode ver no mesmo plano a cena do estupro e o desenrolar da vida de todos os demais habitantes, como num dia qualquer, sendo que os demais personagens não vêem a cena do estupro, já que na realidade da história existem ali paredes e construções, que impedem que tal cena seja vista. A união perfeita da cenografia e da história para oferecer ao público uma belíssima cena. Grande filme.