Primeiro, o filme Dogville merece ser assistido, é instigante, meio hermético, enigmático e impactante. O diretor montou a cidade a custa de traços no chão, não há paredes nas casas, não há moveis a não ser que sejam necessários para o desenrolar das cenas, os jardins e as ruas também são apenas simulados por desenhos, tudo é “faz de conta”. Mesmo a cidade sendo “transparente”, as pessoas agem como se existissem portas, janelas e paredes, se alguém se encontra “dentro” de casa, outros não podem vê-lo. A cidade, supostamente situada nos meio oeste americano, não tem estrutura formal, não tem prefeitura, órgãos públicos nem representantes da população.
Quando Grace, personagem de Nicole Kidman, chega à cidade fugindo de gangsteres e da polícia, é recebida por Tom (Paul Bettany) que é uma espécie de consciência coletiva dos habitantes. Sob o pretexto de discutir assuntos comunitários, Tom reúne os quinze habitantes na igreja e exerce forte influência sobre todos no sentido de doutriná-los a seus caprichos, mantém uma vigilância férrea sobre o comportamento de cada um. No entanto, aparenta ser bonzinho, conciliador, prestativo, é um manipulador.
Grace, por ser estranha à cidade, é, inicialmente, tratada com desconfiança, depois, graças à manipulação de Tom, através de votação, todos concordam em abrigá-la por duas semanas em troca de serviços que ela prestará como uma espécie de enfermeira- doméstica-babá-escrava mal remunerada. O interessante dessa troca de proteção por trabalho, é que o brilho nos olhos das pessoas deixa a impressão para Grace e para os expectadores que todos são gentis, acolhedores e bondosos. No decorrer, a verdadeira face da comunidade vai se revelando, Tom, o manipulador, a despeito de dizer-se apaixonado por Grace, é um tirano cruel que se alimenta da alma dos que o cercam. Os demais mostram sua mesquinhez e vileza, exigem de Grace cada vez mais trabalho em troca de menos dinheiro. Grace passa a ser objeto de extravasamento das frustrações e recalques dos habitantes, ela é estuprada e sofre tortura mental. Afinal, a pacata cidadezinha interiorana mostra a sua verdadeira cara de sociedade gananciosa, arrogante e egoísta, todos são culpados, os esqueletos nos armários, embora não sejam visíveis, existem e tiram o sono dos cidadãos “de bem”.
O diretor Lars Von Trier reuniu um elenco cósmico que dá peso de galáxia ao filme: Lauren Bacall, James Caan, Bem Gazzara, Paul Bettany, Jeremy Davies (lembram do Cabo Upham, fluente em francês e alemão do pelotão em “O resgate do soldado Ryan”?) e, muitos pontos acima de qualquer atriz nos últimos anos, ela, cujo enorme talento só não fica mais evidente por que o nariz atrapalha, a insuperável, maravilhosa, rinotranscendental, Nicole Kidman! Sabem por que o nariz atrapalha? O apêndice nasal da moçoila é tão formoso, tão perfeito, tão gracioso, tão cuti-cuti (mais do que o da Grace Kelly até), que ela tem que se esforçar para não deixá-lo roubar a cena, ela tem que superá-lo o tempo todo senão o espectador fica mesmerizado e esquece de reparar na interpretação da atriz por trás do nariz.
Assim, encerro o comentário sem maiores revelações porque os convido a assistirem ao filme, vale à pena até porque só o nariz da Nicole Kidman vale mais do que o ingresso ou o aluguel do DVD. JAIR, Floripa, 23/08/10.