Um filho de Lynch com Cronenberg
por Rafael FelizardoSe David Lynch e David Cronenberg tivessem um filho, o resultado certamente seria Censor.
Quando em janeiro do ano passado o longa-metragem Censor foi anunciado como uma das presenças do Festival de Cinema de Sundance, poucas pessoas prestaram atenção. Afinal, um filme de terror de baixo orçamento, dirigido por uma diretora que fazia sua estreia no campo dos longas, não podia ter nada de excepcional, não é mesmo?
Alguns dias depois, a comunidade cinematográfica — ou talvez apenas os aficionados por horror — descobriu Censor. Com os dois pés na porta, a diretora Prano Bailey-Bond fez de sua estreia uma grata surpresa, entregando um cartão de visitas responsável por trazer frescor a um já saturado gênero.
Censor revive um polêmico período do cinema
Para entrarmos no universo do filme, primeiramente, é preciso entender a época em que ele está submetido. Durante a década de 1980, o terror começou a lidar com um subgênero chamado popularmente de “Video Nasty” (lembra de Faces da Morte?). O movimento era composto em maior parte por produções de baixo custo comumente encontradas em locadoras de VHS, e que apresentavam sensacionalismo sexual, violência, gore e outras temáticas mórbidas. No auge da controvérsia gerada, principalmente no Reino Unido, a indústria cinematográfica aumentou o investimento nos chamados “censors” (censores, em tradução livre), profissionais que seriam incubidos de assistir aos longas e assim dizer o que deveria ser cortado, com intuito da obra ser exibida, legalmente, em cinemas, TVs e outros veículos populares. Naquele momento, o grande medo das instituições responsáveis era que toda a brutalidade contida nestes filmes poderia vir a destruir os bons costumes familiares.
A partir de então, a trama apresenta a personagem Enid Baines (Niamh Algar), uma mulher que trabalha como censora para uma organização encarregada de classificar, e até impedir, a estreia de filmes no Reino Unido. Tomada por uma grande culpa em relação ao passado, quando permitiu o lançamento de um título que acabou influenciando diretamente um assassinato real, ela tornou-se linha-dura no ofício, passando a reprovar qualquer mídia que pudesse trazer o mínimo de transtorno para a sociedade. Então, quando um vídeo lhe parece estranhamente familiar, Enid põe-se a acreditar que uma das atrizes da obra é a sua irmã que foi dada como morta há anos, iniciando uma busca que começa a dissolver o muro entre realidade e ficção.
Apesar de Censor flertar com a temática dos videos nasties, uma de suas grandes qualidades está exatamente em não ficar preso ao gênero. Com uma atmosfera oitentista soturna e uma fotografia que faz brilhar os olhos de quem é apaixonado — como eu — pelos neons azuis e rosas característicos das produções neo-noir, o filme se estrutura com maestria sob uma estética onírica, essencial para contar a jornada distorcida de Enid e assim dar vida a um enredo que tem a originalidade como característica.
Uma narrativa contada em diversos níveis
Construir uma narrativa que consiga contar a mesma história de diversas maneiras é um dos pontos altos da proposta do cinema conceitual. Dentro dessa perspectiva, o longa aqui analisado é extremamente feliz quando faz o uso de diferentes proporções de tela no decorrer da obra, ora em um mais conhecido 2.39:1 (ultra widescreen), ora em um vintage 1.33:1 (o famoso 4:3). O mais interessante disso é que o espectador não precisa ser um expert em aspectos técnicos do cinema para entender a mensagem passada pelos cineastas. Inconscientemente, esse tipo de conceito é prontamente interpretado por nós, como por exemplo, quando sentimos uma sensação claustrofóbica no momento em que o formato de tela muda de uma configuração retangular para uma mais quadrada, sempre com a intenção de situar o espectador nos diferentes estágios da percepção da protagonista — além de provocar a própria personagem com a possibilidade dela estar adentrando um mundo que foi responsável por reprimir: o dos videos nasties.
E o cuidado da direção fotográfica não para por aí. Se no início do longa temos uma câmera deliberadamente estável, procurando deixar ao centro da tela uma personagem que ainda se mostra como uma pessoa rígida, aos poucos, vemos as tomadas se transformarem em jogos de câmera mais errantes, menos travados, acompanhando a metamorfose da Enid inflexível em uma mulher que não tem mais certeza de suas convicções.
E uma parte final com pequenos problemas
O terceiro ato da obra apresenta alguns pontos destoantes em relação ao resto da produção. Rompendo com a progressão slow burn (a famosa levada lenta) impressa nos outros capítulos, a parte final emprega um ritmo um pouco mais corrido, levando a uma quebra desconfortável no andamento. Além disso, por mais que não atrapalhe tanto o enredo, alguns elementos da sucessão de acontecimentos ocorrida a partir do momento em que Enid chega ao trailer de filmagem, próximo ao fim, soam perfeitamente questionáveis, podendo ter um desenvolvimento menos inverossímil por parte da equipe de criação.
Ao fim, Censor consegue retomar sua excelência característica, apresentando o melhor fechamento possível para o filme, e lembrando outro terror psicológico extremamente competente em sua proposta: Saint Maud.
Com o filme, surgem os destaques individuais
Uma das grandes dificuldades de escrever um filme reside no fato de que as obras cinematográficas não dependem apenas de um bom roteiro para ter sucesso em sua concepção. Por mais que a trama passe com louvor por todos os testes necessários, uma série de outros elementos também contribuem para caracterizar a qualidade da produção; funcionando, às vezes, para derrubar um roteiro bom e, às vezes, para dar vida a um roteiro ruim.
Neste ponto, uma fração de Censor surge como pilar para que o filme funcione como um todo. Passando por uma bela fotografia, um script sólido e uma direção primorosa, a grande atuação entregue pela protagonista Niamh Algar possibilita que o longa seja crível, tornando-se a base para sustentar todas as outras peças. Em evidência, hoje, a atriz estrela a aclamada série Raised By Wolves, começando a apresentar suas credenciais e juntando-se a uma excelente safra de novos atores de Hollywood.
Além disso, o fato do título ser o primeiro longa-metragem de Prano Bailey-Bond, uma cineasta, até então — ou talvez ainda —, desconhecida, diz muita coisa. Apresentando a desenvoltura de uma profissional com anos de estrada, a britânica nascida em uma cidade de nome difícil no País de Gales teve competência para entregar um dos melhores terrores psicológicos dos últimos anos. Fã assumida de David Lynch, é possível claramente ver resquícios do diretor em sua obra. E se algum dia ela quiser se gabar de seu trabalho, como dito pelo primeiro parágrafo deste texto, pode afirmar com orgulho que dirigiu um filho de Lynch com Cronenberg.