O passado no presente
por Barbara DemerovPara além da necessidade de montar uma narrativa documental com artifícios diversos (tais como narração em off, imagens de arquivo, etc), o novo filme de Maria Augusta Ramos é um grande exemplar de que o essencial neste gênero é o que já consta em sua definição oficial: o documentário é a apresentação da realidade. Não Toque em Meu Companheiro apresenta uma estrutura parecida com a de O Processo, mas com um conteúdo mais compreensível, sem os termos técnicos vistos na produção sobre Dilma Rousseff. Porém, a história que a diretora quis contar possui diversas camadas para reflexão e não deixa de ser complexa.
Em 1991, um grupo de trabalhadores da Caixa bloquearam as agências nas quais trabalhavam para reinvindicar seus direitos, incluindo o aumento de seus salários. O resultado disso foi a demissão em massa de 110 bancários e, posteriormente, em mais uma grande manifestação dos profissionais pensando no bem-estar coletivo. O que aconteceu nessa greve, em pleno governo Collor, foi um raro ato de altruísmo que até hoje ecoa nas vidas de quem a atravessou com bravura. Afinal, os funcionários que permaneceram em seus empregos pagaram os salários de quem fora demitido por um ano, algo que se tornou uma das atitudes sindicais mais significativas da nossa história.
Não Toque em Meu Companheiro explica o contexto de toda a situação através dos próprios diálogos entre os profissionais que se reencontram no presente. As pessoas relembram os atos, veem fotos antigas, falam sobre o ex-presidente Collor em tom de descrença. Não é necessário uma explicação didática sobre o que se passou no início da década de 90 porque suas palavras sintetizam tudo facilmente, sem delongas. Da mesma forma que suas emoções ao falarem abertamente sobre as dificuldades enfrentadas a partir do momento em que foram demitidos.
DOCUMENTÁRIO OBSERVATIVO QUE SALIENTA SEMELHANÇAS ENTRE O ONTEM E O HOJE
Ao longo da troca que presenciamos na roda de diálogo, é interessante notar como o conteúdo vai se abrangendo cada vez mais até chegar ao cenário político atual. Assistir às semelhanças dentre os governos democráticos de forma tão cristalina é impactante - especialmente pelo fato de a diretora não forçar a comparação. Elas estão ali para todo mundo ver, basta prestar atenção.
O que Maria Augusta Ramos prioriza no documentário é seu tom observativo, atuando quase como uma companheira do espectador. É ele quem faz a narrativa andar do modo mais apropriado, pois dá todo o espaço necessário para que as personagens trabalhem o tema e o expliquem ao público. Ao mesmo tempo, insere passagens poderosas da professora de Filosofia Marilena Chaui, que traz analogias pertinentes do governo Collor com o atual governo Bolsonaro.
O Estado Mínimo e o neoliberalismo são citados por diversas vezes - tanto pelo grupo de trabalhadores que fala sobre o capítulo da História que viram com os próprios olhos quanto nos discursos de Collor na época. Ramos não precisa fazer esforço para enviar sua mensagem de forma clara: o governo de ontem se transformou no governo de hoje. Ou seria o contrário? Aliado a todos estes elementos, o filme encontra seu propósito ao olhar para trás para falar sobre os dias atuais, expondo parte das raízes de problemas que nunca foram embora de fato.