COWABUNGA! Imperfeitas e de coração cheio, As Tartarugas Ninja encontram sua melhor versão
por Diego Souza CarlosChega a ser demasiadamente saudosista dizer que os anos 1980 e 1990 foram extremamente prolíficos para o surgimento de franquias icônicas em comparação aos dias atuais. Mas podemos nos safar deste estigma ao constatar que, de fato, foi um momento ímpar. Entre as diversas preciosidades originadas neste período, As Tartarugas Ninja tem um lugar especial no imaginário do público.
Toda década conta com uma série de propriedades intelectuais que demarcam o momento vivido pela sociedade. Em alguns casos, heróis e vilões ficam apenas no passado, enquanto há personagens que parecem flertar continuamente com a longevidade. Parte do segundo grupo, o quarteto de répteis humanóides sempre soube se manter relevante - mesmo que algumas de suas produções não sejam tão refinadas quanto poderiam.
Em meio à insistência de Hollywood em retomar tudo o que foi frutífero no passado, As Tartarugas Ninja: Caos Mutante é uma daquelas produções que faz jus à sua própria existência e surge de maneira revigorante. O filme não apenas revitaliza Michelangelo, Raphael, Leonardo e Donatello, como deixa claro que o apelo destes adolescentes sempre será universal.
Na animação dirigida por Jeff Rowe, conhecido por A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, ao lado de Kyler Spears (Amphibia), o público acompanha a jornada das Tartarugas enquanto tentam conquistar os corações dos nova-iorquinos através de atos heróicos, com o objetivo de serem aceitos como adolescentes normais. A sua nova amiga humana, April O’Neil, os ajudará a derrubar um misterioso sindicato do crime, mas as coisas se complicam quando um exército de mutantes se volta contra eles.
Um dos maiores problemas de algumas adaptações das Tartarugas Ninja é o fato de esquecer algo impresso no próprio nome original da atração: Teenage Mutant Ninja Turtles (Tartarugas Ninja Adolescentes Mutantes, em tradução livre). Seth Rogen, o produtor-executivo desta empreitada, já havia dito em um dos primeiros anúncios que estava orgulhoso de resgatar essa merecida jovialidade aos personagens, algo que sempre lhes pertenceu. E não me entenda mal. É bom ter diferentes abordagens do grupo, mas o ideal seria partir para outras perspectivas depois de apresentar uma história “definitiva” deste momento tão importante da juventude.
O quarteto é, enfim, tomado pela energia caótica da adolescência - algo que está tanto no roteiro quanto nas vozes de cada um. As características dos personagens não mudam tanto, mas ganham camadas muito bem-vindas: enquanto Raphael continua esquentadinho e rebelde, a pureza do herói nunca foi tão nítida; Leonardo segue como um líder nato, mas tem a aliança com os seus irmãos acima de qualquer regra; Mike segue como a “cola” do grupo, espontâneo e bem-humorado, porém em sua versão mais fofa; já Donatello não fica restrito ao papel do cérebro da equipe, mas seu amor por k-pop e animes mostra que ele tem facetas completamente identificáveis ao público.
Sabendo que se trata de um filme produzido pelo “o eterno adolescente”, que hoje trabalha com franquias como The Boys e Invincible, é tranquilo dizer que o longa apresenta um caldeirão de referências à cultura pop. São muitas, sem brincadeira. Temos citações a divas pop, um grupo de k-pop famosíssimo, animes, longas-metragens live-actions, outras animações, galãs do cinema, super-heróis da Marvel e DC, entre outras menções. Até a frase “Pra mim parecem uns mini Shreks” é usada em um ponto do filme.
À primeira vista, o público pode notar a grande diferença do longa com relação a outras animações. O típico CGI é deixado de lado para dar lugar a uma animação irregular. Segundo o diretor, o traço desenhado a mão foi pensado de forma específica: a ideia era parecer com algo feito por um adolescente, com linhas menos lineares e mais rascunhadas. Ao mesmo tempo, essa atmosfera rústica e inovadora deveria assumir uma familiaridade com os quadrinhos originais - e é exatamente o que acontece na tela.
O estranhamento existe, mas não dura, pois nos primeiros cinco minutos a trama propõe a contextualização de um universo intenso, vivo e cheio de perigos de forma cativante. Como uma sequência de artes conceituais animadas na tela, essa energia caótica dos personagens e deste mundo se traduz no estilo de animação. Enfim, existe uma sinergia perfeita entre linguagem e narrativa.
É notório dar o mérito a Homem-Aranha no Aranhaverso, sucedido por sucessos como A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, Gato de Botas 2 e Os Caras Malvados. Tais projetos mostraram que ousar não é apenas enriquecedor esteticamente, mas também pode se refletir nas bilheterias, nas premiações e nas críticas. Apesar dos créditos, é importante salientar que As Tartarugas Ninja: Caos Mutante segue o seu próprio caminho e deixa ainda mais claro que o futuro das animações está na experimentação.
A formatação do longa possibilita que as tartarugas sejam vistas no auge de sua juventude, algo que justifica a premissa do filme: o que elas mais desejam é viver lá em cima, na superfície, entre os humanos, como adolescentes comuns (mesmo não sendo). Chega a ser curioso o fato de que a história gire em torno de algo tão simples e, ao mesmo tempo, tão profundo. Não é de hoje que as narrativas que rodeiam As Tartarugas Ninja culminem neste discurso de aceitação. São quatro pequenos répteis mutantes e bípedes criados por Splinter, um rato mestre nas artes do ninjutsu que assume o papel de pai.
Entre os diversos subtextos a serem explorados nesta ideia, podemos citar alguns: há paralelos com a jornada de pessoas sub-representadas ou pertencentes a minorias, conexões com multiculturalismo e temas progressistas de acordo com a formação desta família. O fato de serem adolescentes também ilustra com precisão o momento de “sair do casco” (desculpem o trocadilho!) e começar a tentar ser aceito pelo mundo frio e cruel.
Sabe-se que o quarteto tem uma relação cada vez mais próxima com questões de identidade. Há uma forte conexão da franquia com a cultura negra, por exemplo, a partir de teorias que indicam que os jovens representam uma analogia à vivência da negritude. Essa ligação existe há décadas, desde a influência nata da cultura hip hop nos quadrinhos ao grito de guerra "Turtle Power!", uma referência direta a “Black Power!”. Inclusive, uma espécie de confirmação surgiu há alguns anos, no crossover “Mighty Morphin Power Rangers / Teenage Mutant Ninja Turtles II #1”, no qual Raphael, Michelangelo, Donatello e Leonardo ganham hologramas humanos e são vistos como adolescentes negros.
Caos Mutante consegue acessar muitos destes temas de forma sutil. No entanto, não é apenas no discurso implícito e, por vezes, explícito que a animação conquista a audiência, mas na forma leve e hilária como esta família disfuncional de mutantes subverte tantos pormenores.
As Tartarugas Ninja embarcam em um furacão cheio de causas e efeitos a fim de conquistar o objetivo principal de suas vidas, mesmo que não entendam inicialmente o que está em jogo ou que sofram represálias. A pureza não permite que os erros sejam enfadonhos e tornam as ações completamente palpáveis dentro do contexto. Afinal, são adolescentes ali.
As risadas são parte intrínseca desta aventura animada e isso funciona como uma forma de desarmar o público antes de mostrar certos trunfos emocionais. Quando menos esperar, a audiência estará com lágrimas nos olhos diante de um grupo bizarro (e fofo) de mutantes.
Entre pizzas, um humor nonsense, uma trilha tomada por rap e hip-hop e uma aptidão nata para as artes marciais, As Tartarugas Ninja: Caos Mutante apresenta os heróis do esgoto em sua melhor forma, pois é chegada a hora de reivindicar um lugar ao qual sempre pertenceram - figurativa e literalmente -, seja nas ruas de Nova York, seja no sorriso de quem assistir a um dos melhores filmes de 2023.