Alma humana e toque de fantasia: Separação, encontro, fim e origem são tema de filme brasileiro premiado no Festival de Berlim
por Aline PereiraFim e começo, morte e vida, separações e conexões. São várias (e bonitas) as oposições que a diretora Juliana Rojas, premiada no Festival de Berlim, nos propõe ao longo de Cidade; Campo. Com a força do feminino e a busca pelas raízes como principal denominador em comum – e de diferença – entre as tramas contadas, o longa de 2024 incrementa com fantasia uma realidade que está sempre em busca de luz.
Vencedor do prêmio do júri da crítica e do troféu de Melhor Atriz para Fernanda Vianna no 52º Festival de Cinema de Gramado, em 2024, Cidade; Campo tem duas histórias separadas. Primeiro, somos apresentados a Joana (Vianna), uma vítima da tragédia causada pelo rompimento da barragem de Brumadinho que perdeu tudo o que tinha e precisa se mudar para São Paulo para tentar recomeçar sua vida. Depois, conhecemos Flávia (Mirella Façanha), que está de mudança para a fazenda que pertencia a seu falecido pai, acompanhada da esposa, a veterinária Mara (Bruna Linzmeyer).
Como o título do filme indica, Cidade; Campo tem dois cenários distintos e as histórias correm de forma independente em cada um deles – a busca pelas possíveis ligações entre as personagens, aliás, me despertou uma vontade de revê-lo assim que terminou. Entre os vários destaques de Juliana Rojas na direção, a sensibilidade para entrelaçar as duas tramas talvez tenha sido a primeira característica a me saltar aos olhos e a que mais me causou admiração: não são dois filmes juntos, mas uma “alma” única com perspectivas diferentes.
No lado da Cidade, temos uma jornada de separação em que a perda das raízes causa grande sofrimento: a melancolia de Joana é tocante em sua busca para estabelecer um novo chão – às vezes, de forma literal, quando, por exemplo, a personagem encontra, dentro de um apartamento, um pedacinho de terra para colocar os pés. Seu primeiro passo nesse caminho é a reconexão com a família, que tem ótimos momentos na relação entre ela e o garotinho Jaime (Kalleb Oliveira), sobrinho-neto que, com a ajuda da tecnologia, ajuda Joana a encontrar um emprego.
Com isso, a protagonista passa a fazer parte de uma empresa que moderniza a contratação de limpeza, uma espécie de “uber de empregadas domésticas”: com a própria casa exterminada, Joana começa a trabalhar justamente ajudando a cuidar das casas de outras pessoas, com outras histórias e que mal sabem quem ela é. As relações que estabelece com outras mulheres que executam a mesma função são um ponto de virada importante para o fortalecimento da própria identidade como uma nova casa.
No Campo, enquanto isso, uma espécie de caminho reverso traz um clima que brinca com o mistério. Na fazenda que pertencia ao pai, a jornada de Flávia traz uma visita às próprias memórias e a conexão com a terra, dois fatores que, na verdade, fazem parte de uma grande coisa só. Aqui, vale destacar a sensação de cabo-de-guerra entre passado e futuro vivida por Flávia: há uma questão a ser resolvida entre a individualidade dela e o relacionamento com a parceira e a necessidade de se acertar com as próprias origens nem sempre corre bem na vida com Mara.
Vejo neste conflito um dos pontos centrais de qualquer relação romântica: é importante, é bom, estar inteiro para que a vida conjunta seja mais completa, mas encontrar um meio do caminho que possa ser compartilhado também faz parte dessa dinâmica. Em Cidade; Campo, a terra parece trazer Flávia ao passado, enquanto Mara a puxa, ainda que com afeto, para o futuro. Com isso, a questão do rompimento de laços que também está presente na história de Joana se apresenta aqui em outra forma.
O longa nos apresenta a alguns dilemas que têm fatores em comuns, mas os mundos diferentes habitados pelas personagens as levam em resoluções muito distintas. Sem a intenção de distribuir respostas ou se pautar em grande acontecimentos – ao menos assim me pareceu –, o filme nos leva a fragmentos daquelas vidas comuns, profundas, inquietas, em busca de equilíbrio. E poucas coisas são tão fascinantes quanto uma lupa bem colocada sobre um pedacinho do mundo real.
Nesse sentido, Fernanda Vianna, Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer formam um trio admirável em frente às câmeras e encontram uma série de momentos para brilhar, especialmente nos mais íntimos. Suas histórias até podem ser interpretadas como alegorias e, claro, o ambiente onde tudo acontece tem um peso fundamental, mas penso que há uma ternura feroz nelas e é isso o que as torna presenças tão singulares.
Como casal, Flávia e Mara têm uma série de passagens que simbolizam um tipo de amor que parece muito real, mas longe de ser batido. A combinação entre a visão de Juliana Rojas sobre as personagens e a proximidade entre as duas em cena cria momentos cheios de personalidades e sentimentos – de impaciência, em alguns diálogos, e de arrebatamento em outros, como em uma das cenas de sexo mais bem filmadas que me lembro de ter visto no cinema.
Os “fantasmas do passado” ganham ares bem literais em algumas passagens de Cidade; Campo que criam um desconforto estranho. Parece um filme realista demais para que se encaixem algumas extrapolações. Embora a fantasia tenha um papel interessante na trajetória de Joana e Flávia, uma dose mais branda dessa escolha narrativa talvez tornasse a presença desses fantasmas mais natural. Quando a ancestralidade surge como um ponto importante para a trama, Cidade; Campo se prolonga em um caminho de fantasia que acaba repetindo, talvez com muita exposição, uma mensagem que estava dada.
O toque fantástico nas vidas comuns até entretém como uma certa quebra de expectativas e uma entrada ainda mais subjetiva na mente das personagens, mas volto a pontuar: poucas coisas são mais mágicas do que as angústias, buscas, esperanças e almas humanas - e essa magia Cidade; Campo tem de sobra.