COMO AS ONDAS SONORAS
A vida não é só um momento no tempo; todos sabem que ela é um encadeado de momentos felizes, difíceis e renovadores. As cinebiografias se tornaram uma tendência forte no mundo da tela grande. Pôde-se ver ou apreciar o roteiro de astros da música como Elton John e Freddie Mercury.
Chegou a vez de uma estrela desse ramo artístico brilhar novamente em frente às poltronas das salas escuras. Revelação dos anos 1980, a norte-americana Whitney Houston tem, em pouco mais de duas horas, o relato de sua carreira e de sua vida.
Para quem viveu a época, pode lembrar um sucesso atrás do outro, o que aparece gradativamente ao longo do filme. Agora, há a oportunidade de conhecer um pouco mais sua vida pessoal e os bastidores de sua carreira.
As primeiras cenas já abordam uma Whitney adulta, passando a vida no estado de Nova Jérsei. É lá que canta no coro da igreja, supervisionada pela mãe, a também cantora Cissy Houston (vivida por Tamara Tunie). Ela aposta no talento da filha e dá dicas de como cantar; claro, se ela quiser seguir esse rumo...
Fora das aulas e dos cultos, a jovem convive com problemas familiares e conhece Robyn Crawford (papel de Nafessa Williams). A sintonia entre as duas logo se consolida e vai evoluir para momentos muito marcantes. Mais tarde, Robyn é designada pela cantora como sua diretora criativa.
Num show em substituição a sua mãe, Whitney é ouvida por Clive Davis (personagem do versátil Stanley Tucci – o qual contracenou em outros filmes como “O Diabo Veste Prada”); sensibilizado pela voz única, Clive oferece um contrato numa gravadora. E, ao contrário de expectativas, ele será seu empresário e ponto de apoio.
Logo, a fama traz seus frutos doces e amargos: gravações com gente consagrada, brigas, críticas e a ascensão na carreira. A importância de Robyn na vida de Whitney é tão grande que a cena deixa a plateia silenciosa.
Mas, repentinamente, a estrela sente que pode estar próxima do chão quando, num evento de premiação, é indicada mas não fatura o troféu. Irritada, acaba sendo consolada pelo seu futuro marido, Bobby Brown (Ashton Sanders). Ela lhe dá o seu cartão de visitas e, daí em diante, torna-se realidade o sonho de Whitney ter sua família. Inclusive ela faz jogo aberto em outra cena de que pretendia formar uma família.
Ao juntar os momentos de vida narrados pelo filme, nota-se a determinação, a garra e a direção da própria carreira. Sem interferências ou palpites. Às vezes, podem aparecer situações embaraçosas como em entrevistas – prestem atenção naquela em que Whitney é sabatinada na rádio.
Outro empecilho é ser uma cantora negra adorada pelos brancos e não repetir o mesmo sucesso entre a gente de sua própria cor de pele.
À medida que a fama vai ficando pelo olhar do retrovisor, empecilhos (o elemento que dá a tônica no desenvolvimento do filme) marcarão o destino da “Namoradinha da América”.
Gastos excessivos, dívidas, má administração feita pelo pai, John Houston, sumiço de cartões, traições do marido e o afundamento perigoso em álcool e drogas desfigurarão a cantora. Aliás, é desconcertante a cena da descoberta das “puladas de cerca” de Bobby, recebendo um ultimato forte, e mostrando a firmeza inabalável da personalidade de Whitney.
Enquanto a porta do inferno se abre, a cantora de fibra e de notas longas coleciona retomadas como a participação em homenagem ao líder sul-africano Nelson Mandela e a honorável apresentação na final do Super Bowl. Em meio a isso, vem sua primeira e única filha, Bobbi Kristina. No filme, deixa-se entrever uma ternura e uma ligação sensível e bonita entre as duas.
Ambiciosa, Whitney tem a ideia de fazer um filme, o “Guarda Costas” em que faz par com o ator Kevin Costner. A cena dessa proposta é bem-humorada e vale a pena.
Aconselhada por Clive a gravar novo disco, Whitney topa, e é aí que mais uma vez as letras cantadas por ela têm alguma relação com a sua vida fora das luzes do palco. Tanto é que grava uma canção de conteúdo crítico e a lança num clipe. Em seguida, Clive a aconselha a se internar numa clínica para vencer o vício.
Com o pai à beira da morte, a cantora o visita e joga na cara dele o que ele não conseguiu fazer: gerar as contas e a fortuna adquirida com muito suor pela filha. Os diálogos são na base de troca de farpas.
Entre os altos e baixos, assim como as ondas sonoras, Whitney Houston encarna a coragem e decide retomar seu posto de diva: aparece no programa de Oprah Winfrey, cantando uma canção, cuja letra tem muito a ver com todas as experiências vividas. Ponto alto da película.
Ainda assim, recebe algumas rasteiras do destino, quando sai em turnê e não consegue a empatia do público na Europa.
Guerreira, a cantora luta pela sua carreira e contra o estereótipo de uma representante de uma época. Tem tino, talento – o que também é válido para Naomi Ackie, a atriz principal.
À sua volta, há gente que nem sempre entende assim, procurando uma brecha, uma queda, um “furo”, acarretando a perda de sua confiança em pessoas próximas. Sua batalha contra as drogas foi perdida numa morte acidental – ao invés de dizerem por aí o contrário; mesmo assim, não dá para se emocionar do meio para o fim, ao se ver a ambiguidade vivida entre vida pessoal e vida profissional.
É o mote da vida real de uma estrela, o que consequentemente amarra o mote do filme, narrado com sobriedade, delicadeza e sem ser piegas. Como disse o dramaturgo Nelson Rodrigues: “a vida como ela é”, já que a cantora se envolve com drogas mais cedo do que foi divulgado em seu momento de ostracismo pelos tabloides.
Aproveitando o gancho: o filme é seguro, conduzido por uma narrativa uniforme, sem derrapar ao abordar os diversos lados da estrela. Assim como é segura a mulher Whitney, pessoa à frente do seu tempo. Ambos transmitem autenticidade.
Também é real como Whitney, principalmente em momentos de baixa, mantém sua voz e a estende pelos compassos. O filme não deixa passar isso incógnito. Ele consegue transmitir com propriedade uma grata revelação musical, além de ser empreendedora, administradora da própria carreira, carismática, doce e sensível. Estes últimos adjetivos são inerentes à pessoa de Whitney.
A princípio ela não tem nada, tem tudo, uma vez que emparelha com outros astros da música. Volta a ter nada, mas soube ter o maior amor de todos. Coisas que seus títulos de sucesso a desnudam. O que ela precisava era dançar com alguém, com um parceiro de verdade.