O silêncio vem de dentro ou vem de fora?
por Aline PereiraOs primeiros minutos de The Silent Twins são uma imersão rápida e alucinante do público em uma história que é real, mas não parece. Com Letitia Wright (em meio às polêmicas de Pantera Negra) e Tamara Lawrence (Educação) no papel das gêmeas June e Jennifer Gibbons, o filme que estreou no Festival de Cannes 2022 é criativo nos recursos visuais para nos levar por uma trama que muda o tempo inteiro. Uma narrativa que vai do terror ao drama à medida em que a intimidade e as (muitas particularidades) das irmãs vão ficando mais e mais profundas.
The Silent Twins é inspirado em um livro que conta a história real de June e Jennifer Gibbons, duas irmãs que não se comunicavam com ninguém, a não ser entre elas mesmas. Desde a infância, as gêmeas sempre expressavam uma personalidade criativa e engenhosa - mas o resto do mundo não sabia disso. As duas tinham um pacto de se manter no mais absoluto silêncio quando estavam na presença de outras pessoas, não respondiam a perguntas e mal mantinham contato visual.
As gêmeas moravam com os pais e irmãos que, ocasionalmente, as ouviam brincando e conversando atrás das portas, mas, ao longo dos anos, a linguagem entre elas começou a se tornar praticamente indecifrável. Enquanto isso, ficava mais intensa também a prática de espelhamento: June e Jennifer imitavam os movimentos uma da outra. A situação começou a se tornar cada vez mais desesperadora para a família e alvo de uma sociedade que marginalizava e excluia as duas - e é desnecessário dizer que tudo isso só fez com que as gêmeas se fechassem ainda mais para o mundo.
A cineasta polonesa Agnieszka Smoczynska, que assina o filme, dá início à trama com uma mistura de referências visuais que desafia o público com o uso de características de histórias em quadrinhos a elementos de terror. June e Jennifer são apresentadas ainda na infância, brincando dentro de seu quarto e já apresentam sinais de uma relação peculiar - é como se as duas vivessem dentro da mente uma da outra, o que também causava rompantes de ódio e desentendimentos repentinos.
Assim que surgem outras pessoas nas telas, o comportamento silencioso das duas é difícil de assimilar: distúrbio, brincadeira, trauma ou revolta? O longa nos desafia a esperar para entender, uma sensação angustiante para quem gosta de antecipar os acontecimentos dentro da própria mente. A mudança drástica de expressão das duas, que fecham a cara para a família, acompanha uma transição da filmagem de um ambiente infantil e expressivo para um mundo exterior frio e hostil - é esta a principal discussão levantada por The Silent Twins.
A família Gibbons migrou do Caribe para o Reino Unido no início da década de 1960 e eram as únicas pessoas negras da região onde moravam - o que, como é de se imaginar, tornou o racismo um elemento presente na vida das gêmeas. Vítimas de atitudes agressivas, físicas e verbais, dos colegas, além da negligência dos adultos, June e Jennifer foram desenvolvendo uma resistência cada vez maior a esse contato, é lógico.
Ao expor tanto o contexto interno quanto o externo, The Silent Twins faz esta conexão entre a forma como o mundo nos enxerga e a forma como nos enxergamos. A hostilidade e o menosprezo influenciam pesadamente na resposta que um indivíduo dá ao mundo, às vezes com agressividade, às vezes com reclusão - como é o caso das duas. June e Jennifer se fecharam em um universo que parecia mais seguro para as duas, em que eram livres para se expressar sem represálias - embora cobrasse seu preço. É claro que esta não é a única camada para o comportamento das irmãs, mas o filme vai as expondo ao acompanhar o crescimento delas.
Escolher o que mostrar e o que deixar de lado em filmes biográficos parece sempre um desafio a seus roteiristas e diretores. Não é diferente com The Silent Twins, que nos deixa a sensação de algumas peças faltando para acompanhar uma história que já é tão fora do padrão. O período em que as duas foram internadas ou separadas parece muito intenso e desperta curiosidade, mas passam rapidamente pelo filme, bem como os detalhes da relação entre elas e a família ou mesmo um acompanhamento “pós”.
Embora seja uma história real, vamos poupar spoilers aqui porque é possível que muitas não saibam o que aconteceu com Jennifer e June - e o filme também deixa essa porta mais aberta do que poderia. Uma escolha de roteiro, é claro, mas que faz falta para completar a experiência.
Nesse sentido, o desenrolar do filme também pode atrapalhar a imersão. Temos uma obra muito artística e muito atenta ao lado mais poético de todos os momentos, o que torna o ritmo da trama devagar em muitos momentos. Novamente, uma escolha técnica, mas que parece atrasar o andamento da trama ou o engajamento do espectador nela.
Por outro lado, uma das melhores características do filme é o tratamento que dá às gêmeas. Não existe um ar de “show de horrores” ao contar a história, com o objetivo de levar o público a encarar as duas como pessoas insanas ou, de alguma forma, doentes. Ao contrário, The Silent Twins é sensível ao dar destaque ao lado criativo e ao funcionamento único da dinâmica entre as duas. June, por exemplo, é autora de um livro publicado, um romance de ficção intitulado “Pepsi Cola Addict”.
Ao ilustrar brincadeiras que as duas faziam quando crianças ou as conversas que tinham quando mais velhas, o longa nos permite enxergar além desta condição incomum. A trama remonta também ao período em que June e Jennifer foram separadas uma da outra na infância, decisão de um psiquiatra que analisou o caso das duas. Uma época terrível e que causou mais uma marca profunda nelas.
Na adolescência, problemas com abuso de substâncias e crimes também começaram a surgir, o que as levou a mais uma internação compulsória e, para elas, uma punição desmedida. Temos um ciclo de violências e descasos que começa e termina com o silenciamento.