Desfazendo um grande mal-entendido
por Barbara DemerovImagine ser um artista e ver sua criação se popularizar a ponto de se tornar um ícone cultural. Parece um sonho, certo? Pois no caso do desenhista Matt Furie a coisa está mais para pesadelo. Seu personagem Pepe, o sapo, começou a circular nos fóruns anônimos do 4Chan (site conhecido nos EUA por ser ponto de encontro da juventude frustrada e com inclinação à intolerância) sem que ele soubesse, inicialmente como meme, depois atrelado a valores violentos que incluem nazismo, racismo e xenofobismo.
O documentário Feels Good Man conta essa história andando sempre na linha tênue entre a bizarrice do caso e a seriedade com que deve ser tratada a ascensão da extrema-direita nos EUA. O diretor Arthur Jones traça uma linha direta entre a usurpação de Pepe e a chegada de Donald Trump à presidência, ligando pontos que, não unicamente mas como parte de um contexto maior, também ressoam no cenário político e social do Brasil nos últimos anos.
O roteiro narra o surgimento despretensioso do personagem nos quadrinhos, um sapo de traços humanos que vive no limbo entre o fim da faculdade e o começo do primeiro emprego, sem fazer muito da vida a não ser fumar e comer ao lado dos amigos. Ao que tudo indica, seu criador é um sujeito totalmente pacífico, de fala mansa e dedicado à arte, sem intenção de embutir um discurso mais elaborado por trás de seus desenhos.
Quando uma tirinha aparentemente inocente de Pepe com o bordão “feels god man” (algo como “me faz sentir bem, cara”, em tradução livre) cai no 4Chan e viraliza como meme, Furie perde o controle da obra. Centenas de usuários se identificam com aquele sapo sorridente desprovido de aspirações ou ideais, a ponto de se sentirem seus donos. Pepe começa a aparecer em imagens “politicamente incorretas” não apenas no campo virtual, mas também no mundo real.
Conectar tantos assuntos importantes e atuais sem perder o foco é um dos trunfos do documentário. O realizador costura depoimentos de artistas dos quadrinhos, cientistas políticos, estudiosos do ambiente digital, membros do famigerado fórum e até um bruxo (!) para dar conta dos diferentes aspectos do caso. Há ainda um grande número de sequências animadas com Pepe e sua turma, que ajudam a manter uma certa leveza no trato do assunto.
Feels Good Man representa também uma espécie de acerto de contas de Matt Furie com a sociedade. Ainda que não admita claramente, percebe-se que o desenhista carrega dentro de si a culpa por, sem nenhuma intenção, ter dado a luz a algo que se tornou um símbolo de ódio. O documentário é uma oportunidade de corrigir isso, caso ganhe visibilidade. Um prêmio no Festival de Sundance e os elogios que vem ganhando durante a Mostra Internacional de São Paulo certamente ajudam a missão.