Minha conta
    Favela É Moda
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Favela É Moda

    Moda de resistência

    por Sarah Lyra

    O trabalho de Emílio Domingos à frente de Favela É Moda se destaca por alguns motivos. Um deles é a fluidez com que conduz o documentário sobre jovens aspirantes a modelo, de modo a construir uma narrativa que transita entre o trabalho cotidiano na agência Jacaré Moda, liderada por Julio César Lima, e depoimentos captados em meio aos exercícios propostos na interação grupal. Lima, embora apareça pontualmente, é a principal força do filme, se portando como uma daquelas presenças da qual dificilmente se tira os olhos. Além de dono da agência, ele atua, na prática, como um conselheiro espiritual e profissional de seus pupilos. Domingos entenda a importância dessa figura e o coloca como um denominador comum, responsável por costurar todas as temáticas implícitas na trama. 

    Lima parte da premissa de que seu papel é mostrar ao mundo da moda algo que esta última já ditou como regra, mas nem sempre consegue alcançar porque a busca por modelos vem de um processo fortemente elitizado. Seus aprendizes, segundo ele, já têm a moda dentro de si, mas cabe a ele ajudá-los a manifestá-la, seja num corte de cabelo, numa escolha de pose ou no modo de pensar a vida. Aqui, a indústria da indumentária é mostrada como fruto inevitável da cultura, e o projeto de Lima vem para exaltar essa característica. São nos detalhes que o líder exibe sua experiência e familiaridade com esse universo. "Ela está andando rápido demais, e aí o salto não sustenta. Tem sempre que andar no tempo do salto", explica ele em certo momento da trama.

    Em sua principal proposta, de comunicar a beleza a partir da comunidade para a comunidade, Favela É Moda é mais do que eficiente em enquadrar os discursos apaixonados de Lima, seja no cuidado estético com que as imagens são tratadas, ou pelos exercícios propostos na agência. É Lima também quem faz questão de abordar frequentemente o passado escravocrata do povo negro, e lembrando que foram eles, e não as instituições formais, que ergueram os morros cariocas com as próprias mãos. "Nós escravos que fizemos isso, e agora sobe loiro, sobe azul, sobe todo mundo, mas a prefeitura não veio aqui colocar saneamento básico, não". A ideia é mostrar aos estudantes que, mais do que nunca, eles representam um rastro de seus antepassados. Talvez por isso, Lima soe quase ingênuo ao contrariar uma de suas alunas, quando ela diz à turma que não se considera feliz. “Claro que você é feliz”, rebate o professor em tom firme, mas gentil. 

    Lima faz questão de dizer que não iniciou seus trabalhos para ditar a moda, mas sim para acompanhá-la, quase como se dissesse que o que foi ditado não pode ser desfeito. Ora, como não? Só o fato de propor um agenciamento de modelos em territórios periféricos do Rio de Janeiro já não é um movimento de contracultura? Por que ele se coloca como leal e obediente à indústria enquanto tenta transformá-la tão profundamente? Tal contradição, ou uma possível percepção contrária por parte dos estudantes e do próprio filme, jamais é abordada ou problematizada por Domingos, que se restringe a ceder um espaço para os discursos. Lima, por mais fascinante que seja, não expõe suas motivações mais profundas. Por que é tão importante dizer a uma jovem mulher negra, com dificuldades financeiras em casa e que vê a mãe chorando de madrugada que ela é feliz?

    No que diz respeito à identidade visual, a fotografia e a direção de arte são cuidadosamente pensadas para ressaltar cores vibrantes sobre as peles negras, e a montagem transita com leveza e autoridade entre depoimentos improvisados em sala de aula e entrevistas produzidas em estúdio, resultando num conjunto orgânico que insere o filme como parte do processo de autodescoberta daquelas pessoas. Chama atenção o fato de Domingos não exibir letreiros a todo momento que uma nova fala é exibida, pois a estratégia aqui é contrária. Primeiro o diretor instiga o espectador a querer conhecer seus retratados, deixando seus rostos e movimentos corporais sempre em evidência, para depois nos dar um maior acesso. Que esta aproximação também sirva como elucidação, e que a moda de resistência, como é chamada, passe a ser vista. 

    Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.

    Quer ver mais críticas?
    Back to Top