Simplicidade que engrandece
por Sarah LyraEm tempos de dramática polarização política, a arte resiste. Disso, não há a menor dúvida. Ainda assim, é importante refletir acerca do que se produz e para quem se produz. Com discursos geralmente tendendo à esquerda, obras mais independentes e de baixo orçamento frequentemente se apresentam com abordagens e temáticas combativas, que costumam ser bem aceitas por aqueles que partilham das mesmas ideologias. Quando um filme caminha em direção contrária, mais ao centro, corre o risco de não dialogar com nenhum dos lados e propagar uma ideia irresponsável de isenção. Por isso, é uma grata surpresa observar o que a diretora Thaís Borges pretende com seu O Tempo Que Resta. Seu posicionamento político-ideológico está perfeitamente claro, mas ela se preocupa mais em equilibrar o tom da conversa do que gritar a qualquer custo. E certamente Borges e seus personagens têm motivos para gritar.
No documentário, somos apresentados a duas mulheres realmente fantásticas. Maria Ivete Bastos, da comunidade de Carariacá, no Pará, é uma das lideranças na resistência à grilagem e à concentração de terras comandadas por uma milícia latifundiária que não hesita em queimar casas, expulsar famílias e fazer ameaças de morte explícitas. Osvalinda Marcelino Pereira, por sua vez, é agricultora e tenta, ao lado do marido Daniel Pereira, romper a dependência com a milícia que explora madeira ilegalmente na região próxima ao Projeto de Assentamento Areia, no oeste paraense. O filme transita entre dois segmentos que acompanham a exaustiva rotina de luta a qual elas estão submetidas.
O que mais impressiona nas imagens captadas por Borges é a enorme sensibilidade com que as relações são retratadas. Não é sempre que os documentaristas conquistam um nível de acesso tão íntimo e profundo, mas a câmera, aqui, é praticamente um personagem nas vidas dessas mulheres, tamanha é a naturalidade e leveza com que se expressam diante dela. É interessante também o fato de Borges decidir não gastar tempo com grandes contextualizações ou reviravoltas do momento político, ela está mais focada em dar voz às e mostrar o valor das vidas dessas duas mulheres.
Em cenas como aquela em que Osvalinda fala com o marido sobre sua identificação com o mundo das abelhas, pelo senso de comunidade exercido por elas, é mais revelador sobre a personalidade e caráter da personagem do que qualquer resposta a partir de uma entrevista tradicional poderia ser. Também poderosa é a sequência em que um dos homens por trás das ameaças sofridas pelo casal vai até a casa deles para comprar produtos gerados a partir da atividade extrativistas, como açaí. Borges conduz um belo trabalho de fotografia ao enquadrar Osvalinda em segundo plano com uma expressão de puro medo, isso sem falar na coragem de continuar filmando mesmo diante de um cenário de tanta tensão.
Com a abordagem simples e direta usada por Borges, é difícil imaginar que alguma pessoa poderia não sentir empatia por mulheres que, independente de pontos de vista contrários, são injustiçadas e oprimidas diariamente. Que a diretora e seu O Tempo Que Resta estejam dispostos a contar suas histórias, e ainda assim consigam manter uma coesão narrativa e relevância cinematográfica, é não só louvável como extremamente necessário.
Filme visto no 52º Festival de Brasília, em novembro de 2019.