Um convite à discordância
por Sarah LyraHá uma diferença, muitas vezes ignorada, entre debater o resultado final de um filme pelo que ele é e debater pelo que poderia ter sido. No caso de O Mês Que Não Terminou, a tendência para muitos será analisá-lo mais por ausências do que pelo que, de fato, foi apresentado. Isso porque ao se assumir como um liberal de esquerda, o cineasta Francisco Bosco acaba tocando na ferida dos dois lados, o que pode vir a ser interpretado como uma tentativa de agradar a todos, ou se colocar no famigerado “em cima do muro”. No entanto, o aspecto mais notável no trabalho de Bosco é o convite à discordância. Eloquente em seu discurso mais do que em sua direção cinematográfica, o escritor parece ver em seu documentário uma tentativa de falar com mais do que apenas palavras.
A abordagem de Bosco é incômoda, mas necessária. Incomoda termos nossas convicções questionadas com argumentos tão bem embasados e costurados, principalmente em tempos que invalidar radicalmente uma opinião contrária é o caminho mais fácil — e que fique claro: um pensamento fundamentado em argumentos é bem diferente do achismo puro e simples. Em sua disposição de propor um diálogo, em vez de se contentar em comunicar apenas para seus pares, O Mês Que Não Terminou certamente se torna um alvo na posição vulnerável de ser atacado por todos os lados. O filme, entretanto, não é ingênuo de acreditar que seria diferente. Bosco demonstra um nível de controle impressionante sobre seu recorte político ao desafiar o espectador a contrariá-lo.
Em referência a junho de 2013, quando as manifestações populares tomaram conta dos centros urbanos brasileiros, o documentário analisa os desdobramentos e consequências de episódios recentes da política nacional, como o impeachment de Dilma Rousseff, a Operação Lava Jato, a crise do lulismo e a eleição de Jair Bolsonaro. Com o cuidado para não apontar dedos ou determinar uma situação específica como a responsável pelo momento atual, Bosco monta um eloquente painel de entrevistados para costurar a narrativa, que é toda interligada por obras do artista visual Raul Mourão.
Chama atenção, principalmente, o destaque dado à narração em off de Fernanda Torres. Normalmente associado ao didatismo, aqui, de certa forma, é ressignificado por ser inserido de maneira quase constante. Torres se torna praticamente um personagem, tamanha é sua expressividade na leitura do texto. Fica claro, portanto, que a ideia não é tratar o off como um recurso discreto de complemento, mas sim torná-lo um dos aspectos mais importantes do longa. Essa escolha, se tratando de uma obra audiovisual, levanta questões sobre as limitações de Bosco como cineasta. Seria o off uma espécie de muleta para aquele que é reconhecidamente excelente como escritor?
Com um acervo de imagens já expressivo em si, resta ao documentário fazer o trabalho de organizá-las. A montagem, correta e linear, ganha força principalmente pela fluidez com que transita de um entrevistado a outro sem parecer reducionista diante de assuntos tão complexos. Os momentos de respiro vêm através dos segmentos com as artes de Mourão, que nos colocam num modo contemplativo e reflexivo sobre as informações compartilhadas anteriormente, mantendo, assim, o equilíbrio da narrativa.
O Mês Que Não Terminou é um filme para ser revisto, questionado, debatido e dissecado. Que nossos ideais políticos não nos ceguem a ponto de não enxergarmos a diferença entre isenção e diálogo.
Filme visto no 52º Festival de Brasília, em novembro de 2019.