A manifestação de um novo olhar
por Sarah LyraRodantes é um filme que surpreende em muitos sentidos. Inicialmente, por se tratar de uma obra madura comandada por um diretor estreante; momentos depois, pelas reflexões que desperta em tela ao acompanhar três núcleos diferentes que se entrelaçam ocasionalmente, mas sem a necessidade de trazer as histórias para um ponto de convergência. Simples em estrutura e com um ritmo que engaja pela fluidez e naturalidade com que passeia pelos acontecimentos na vida dos três personagens principais, o filme de Leandro HBL funciona em vários níveis de imersão, indo do contemplativo a uma emocionante cena de ação com maestria.
Parte do mérito de Rodantes está, inevitavelmente, nos atores escolhidos para interpretar Tatiane (Caroline Abras), Odair (Jonathan Well) e Henry (Félix Smith). Os três têm em comum o fato de se apoiarem fortemente no silêncio de seus personagens para comunicar sensações, mas se distinguem na maneira de complexificar as camadas das diferentes personalidades de cada um.
Tatiane, assim como os outros dois, carrega dores que jamais poderiam ser verbalizadas. É no olhar cabisbaixo e distante, na aparente indiferença com que trata todas as suas interações e na opressora relação com o próprio corpo que a protagonista se apresenta para os demais. Odair, por sua vez, é uma vítima das circunstâncias. Dócil, ingênuo e em busca de referências próprias de mundo, ele é abordado e induzido por pessoas dominadoras que o enxergam como uma oportunidade sexual. E Henry é o imigrante haitiano que lida com um luto, após a morte da esposa, enquanto tenta sobreviver à miséria e manter os dois filhos em segurança.
Apesar de uma narrativa de personalidade e bem construída, tanto no que diz respeito aos núcleos, individualmente, quanto à costura que une os personagens em um mesmo local, chama atenção o fato de que a montagem dedica um tempo de tela muito maior à Tatiane do que aos outros dois personagens. A sensação, em determinados momentos, é de que o filme simplesmente se esquece de voltar aos eventos na vida de Odair e Henry. De fato, Tatiane é a personagem mais instigante, mas é difícil não questionar a influência da exposição no resultado final, inclusive no sentido de torná-la mais atrativa que os demais, já que o filme se mostra totalmente disposto a deixá-la ditar o tom e ritmo da própria história, algo que não é visto nos outros arcos.
Com uma fotografia que salienta tons quentes e uma textura gerada a partir do ruído na captação das imagens, além de frequentemente enquadrar seus personagens em molduras e janelas, HBL se apropria desses elementos para construir o submundo habitado por aquelas figuras, o que também é fortemente caracterizado pelo uso de sombras. Quase sempre os personagens são vistos sob pouca luminosidade, por vezes com alguns poucos feixes sendo usados como contorno ou estampa — como na cena em que Tatiana olha pela janela através dos buracos da cortina. No que diz respeito aos ruídos, normalmente associados à ausência de luz combinada a uma alta sensibilidade no sensor da câmera, a direção de fotografia faz questão de mantê-los mesmo em cenas mais claras, possivelmente acentuados na pós-produção. A decisão se mostra acertada por criar um senso de identidade plástica e simultaneamente conectar os segmentos.
Rodantes é um filme que vibra e empolga, seja pela capacidade de explorar a linguagem cinematográfica a fim de oferecer ao espectador uma narrativa energética, pela sensibilidade de respeitar as dores e acentuar as lutas de seus personagens sem pré-julgamentos, ou pela simples disposição em sair do lugar comum unida à vontade de fazer cinema. Que o fluxo de consciência tão bem empregado neste longa seja o sintoma da rica carreira de um cineasta que já demonstra, agora, ter muitas ideias a executar.
Filme visto no 52º Festival de Brasília, em novembro de 2019.